Narrativas de ação têm por fundamento dispor de uma natureza pronunciadamente ambígua. Se por um lado essas histórias, repletas de confrontos diretos, perseguições que não raro extenuam o espectador, tiroteios que, por muito pouco, não massacram o pobre candidato a salvador da humanidade, também encerram lições sobre como fomos abrindo mão do prazer diário que é o milagre da vida; nos deixamos ensurdecer aos apelos silentes que nos dirigem os rios, os mares, as matas, o ar; acatamos a premissa enganosa de que só conseguiremos o progresso por meio de uma degradação ambiental metódica, que redundará, por óbvio, no nosso próprio fim. Diante de enredos como esses, nos apercebemos de que o mundo às vezes lembra uma avenida, larga e imensa perdida no sem-fim da cidade, ao longo da qual nos embrenhamos a horas mortas de uma madrugada deserta. À medida que avançamos e nos permitimos sumir por seus intestinos de concreto e breu, julgando, ingênuos, estarmos perto da saída, menos segurança temos quanto ao ponto em que na verdade nos encontramos. Só nos resta continuar essa perambulação às cegas e torcer para que alguma alma bondosa nos venha resgatar, como se cada segundo de que dispuséssemos se transformasse num tesouro de valor inestimável e cada volta do relógio fosse a derradeira, a crucial, para que alcançássemos nossa sonhada redenção.
Tom Cruise encara à perfeição esses tipos messiânicos, que salvam a humanidade de si mesma movido por princípios — e motivações outras que nunca restam suficientemente claras. Seu Ethan Hunt, o anti-herói mais longevo do cinema, já atravessa mais de um quarto de século escalando pedreiras, se jogando de pontes, aprendendo a pilotar helicópteros na prática e, o mais importante, segurando produções cujo orçamento bate a casa da centena de milhões de dólares, em histórias que se prolongam para mais que as duas horas protocolares do mercado cinematográfico, e não raro seguem reverberando na cabeça do espectador por semanas a fio. É o que acontece em “Missão: Impossível — Nação Secreta” (2015), em que Cruise e o diretor Christopher McQuarrie iniciam a exitosa parceria vista também em “Missão: Impossível — Efeito Fallout” (2018), e que promete se estender por mais duas temporadas, em 2023 e 2024.
Aqui, McQuarrie começa a esquadrinhar o que se vai assistir em “Efeito Fallout”. Ethan Hunt, que a essa altura dos acontecimentos já se tornou seu alter ego fílmico, toma pé de um tal Sindicato, associação de ex-agentes da CIA, a autarquia americana responsável pelas operações de espionagem e contra-espionagem internacional, que continuam na ativa, prestando serviços pontuais sem que a opinião pública tenha a chance de se meter. Como sempre acontece em corporações de gente muito poderosa que quase nunca submete-se ao escrutínio da lei, despontam no Sindicato os Apóstolos, uma ramificação bioterrorista da facção que, sem propósitos muito bem definidos que não o de espalhar o caos por meio de manifestos apocalípticos, se infiltra na FMI, a Força de Missões Impossíveis, na figura de um tal John Lark, que planeja surrupiar a carga de plutônio necessária para desenvolver não uma, mas três bombas nucleares. Em “Nação Secreta”, o diretor apenas insinua essas novas incumbências de Hunt, dando preferência, acertadamente a elaboração de Solomon Lane, o psicopata interpretado por Sean Harris, cuja ira terá de conter. Depois de algumas reviravoltas, o acerto de contas entre os dois acontece finalmente, mas Lane, como se atesta em “Efeito Fallout”, segue tirando o sono do mocinho.
Outro dos gols de placa de McQuarrie é não colocar todos os ovos numa única cesta (que sempre aguentou o tranco galhardamente, diga-se) e apostar nos coadjuvantes. É difícil ser taxativo quanto a quem se destaca mais no qualificadíssimo elenco de apoio, se Alan Hunley, o chefe da FMI de Alec Baldwin, que deixa entrever uma nesga dos conflitos éticos que o filme de 2018 aprofunda; se Benji, o atrapalhado burocrata da CIA vivido por Simon Pegg, carisma puro; ou Luther Stickell, o gigante gentil de Ving Rhames. Se fosse para arriscar um, ou melhor, uma, ficaria mesmo com a sueca Rebecca Ferguson na pele de Ilsa, um evidente tributo à personagem de Ingrid Bergman (1915-1982) em “Casablanca” (1942), de Michael Curtiz (1886-1962), cuja semelhança chega a assustar. Como na antimocinha de Bergman, a desfaçatez de Ilsa é o sal de “Missão: Impossível — Nação Secreta”, e esse antirromance, às raias da destruição para uma e para o outro, encarna as melhores passagens, deste filme e do que o sucede.
Filme: Missão: Impossível — Nação Secreta
Direção: Christopher McQuarrie
Ano: 2015
Gêneros: Thriller/Aventura/Ação
Nota: 10/10