“A Mulher Mais Assassinada do Mundo” fulmina de uma vez por todas a dúvida de alguns: a humanidade já existia antes da internet — e da televisão, do rádio e do cinema. Em lugar incerto da escala evolutiva, entre a pintura nas cavernas e o desenvolvimento do aparelho fonador, surgiram a capacidade e a necessidade do homem se expressar, mediante a encenação das situações próprias ao seu dia a dia, momento em que aproveitava para render tributo aos deuses, como forma de agradecer e zelar pelo dom do existir. Celebrações orgíacas por natureza, eminentemente festivas, as histórias contadas no teatro sempre se caracterizaram por fazer da diversidade uma verdadeira profissão de fé, registrando modos de pensar relacionados às correntes ideológicas mais distintas, tecendo críticas muitas vezes ferozes aos poderosos de turno. De Shakespeare a Ibsen, passando por Sófocles e Nelson, o teatro vem pondo o dedo nas tantas mazelas do gênero humano, e de quando em quando essa manifestação artística de primeira grandeza renasce, malgrado, é forçoso admitir, já faça algum tempo que o expediente teatral não compõe a rotina da maior parcela das sociedades em todo o mundo, a começar por suas elites. Tornamo-nos miseráveis, e o mais lamentável: a indigência não nos afeta.
O Grand Guignol, assim batizado em alusão à casa de espetáculos na região do Pigalle, em Paris, especializada no chamado horror naturalista, é o enigma dentro do enigma. Muito poucos conhecem a trajetória desse gênero, que marcou época na França entre o final do século 19 e boa parte do 20, quiçá apenas quem tenha optado por cursos de ciências humanas na faculdade; estes decerto hão de se lembrar primeiro da importância do lugar em que o gênero até então mais abrangente do teatro tomou corpo e foi catapultado, como tudo o que a França produzia, para o restante do globo. O Grand Guignol foi “o” lugar quanto a se sorver as exíguas vivências num mundo muito maior que o das conexões instantâneas de um átimo, momento em que o cidadão comum se desligava por breves instantes do ramerrão da vida ordinária e se saciava do delírio de ir de um lugar a outro apenas se concentrando no que emanava do palco. Ponto de encontro da aristocracia, o Grand Guignol foi também berço de movimentos artísticos de vanguarda, e só mesmo na capital francesa toda essa engrenagem poderia girar. Foram 65 anos, de 1897 a 1962, subvertendo o raso imaginário da plateia e inspirando reações as mais díspares, de ímpeto a asco, de desespero a alguma coisa análoga à felicidade. Esse carrossel de sentimentos pavimentou o caminho que nos conduziu aos grandes enredos de terror do cinema, de Tarantino a Del Toro, sem esquecer de Hitchcock e Kubrick, os menestréis do suspense, seu irmão xifópago.
Marie-Thérèse Beau (1898-1970) foi a encarnação do prestígio do Grand Guignol. Beau, conhecida sob o nome artístico de Paula Maxa, viveu quase tanto como o teatro que a consagrou, nascendo pouco antes e morrendo algum tempo depois de seu fim. Vítima oficial das peças levadas ao proscênio da casa, Maxa foi, não perca o fôlego, estuprada, queimada a ferro, teve o olho extirpado, sentiu o aço dos facões, foi baleada e decapitada, tudo isso pelo simples salário pago pelo secreto coração da plateia. Ser a mártir eterna, por evidente, tinha suas vantagens, a começar da fama avassaladora, que lhe abriu as portas a uma existência particularmente sublime, plena de privilégios e bajuladores, e entre esses o admirador que estrela nenhuma gostaria de ter. Crimes da vida como ela é, inspirados nos suplícios de Maxa em cena, despertam na atriz a autocrítica social que até então lhe faltara, além de lhe acender a luz amarela que passa a ofuscá-la: e se ela protagonizar essa história sem a pele da personagem para servir-lhe de abrigo?
“A Mulher Mais Assassinada do Mundo” transita entre esses dois arcos, o da reconstituição histórica de um período da maior relevância para a cultura ocidental e o do terror oculto em crimes que se transportam dos palcos do Grand Guignol para as ruas de Paris, com certa desenvoltura, não obstante Franck Ribière se saia melhor na segunda configuração — ainda que a performance de Anna Mouglalis seja o zênite indiscutível do roteiro do diretor mais um trio de colaboradores. Confesso que não tive olhos para mais ninguém na tela; a atuação de Mouglalis hipnotiza por captar a essência do filme, qual seja, deslizar do exagero de Maxa enquanto dá vida a suas desditosas personagens para um temperamento gélido, quase mórbido, no instante em que se livra do papel. A abordagem do Grand Guignol ela mesma pode ter parecido a Ribière uma grande sacada, mas morre no ovo, de inanição. Uma pletora de excelentes outros filmes retrata os bastidores dos espectáculos de horror naturalista parisienses com mais destreza, mais técnica e, por evidente, mais encanto na assombrosa riqueza de detalhes, a exemplo de “Primavera para Hitler” (1967), clássico dirigido por Mel Brooks, em que produtores se esmeram por levar aos palcos a pior peça já encenada, mas se deparam com uma surpresa incomodamente feliz. O trabalho de Ribière bebe dessa fonte, elaborando uma leve sátira a respeito da serventia do mau gosto estético na arte, e venturosamente suas pretensões filosóficas param por aí. Ao cabo de mais de cem minutos, o público se ressente é de não ter por mais tempo Anna Mouglalis e sua versão de Paula Maxa, morta aos 71 anos, sepultada numa vala comum e hoje totalmente esquecida. Esse é, em verdade, o grande recado que “A Mulher Mais Assassinada do Mundo” deixa.
Filme: A Mulher Mais Assassinada do Mundo
Direção: Franck Ribière
Ano: 2018
Gênero: Mistério/Suspense
Nota: 8/10