“Major Grom Contra o Dr. Peste” é um testemunho do progresso, ainda que lento e esporádico, do cinema russo. Manifestação artística das mais tradicionais da Idade Contemporânea — e quiçá uma das mais eivada de paradoxos —, a indústria cinematográfica da Rússia foi aberta não exatamente por um filme, mas com uma composição de propaganda. Em 1896, o cineasta belga Camille Cerf (1862-1936) foi incumbido de mostrar o que aprendera com os irmãos August (1862-1954) e Louis Lumière (1864-1948) e registrar a coroação do czar Nicolau 2° (1868-1918) no Kremlin, hoje sede do Executivo russo, em 18 de maio de 1896. Nascia, de um jeito meio atabalhoado, autoritário e involuntariamente plural, o rudimento de uma indústria que, claro, já viveu dias melhores, mas que de quando em quando surpreende, num enérgico resfôlego de vida.
O primeiro documento fílmico elaborado na Rússia pode até não ter ido além de vergonhosa louvação a uma forma sutil — ou menos patente — de tirania, alijada do poder 21 anos depois por outros déspotas, mas a despeito das mudanças de sistema político, da ascensão bolchevique e da selvageria que se lhe veio por resultado no subcontinente, o cinema russo não se calou. Em 1925, o diretor letão Serguei Eisenstein (1898-1948) levou à tela o protesto de marinheiros por condições de trabalho mais decentes da única maneira que sabia. Trata-se de “O Encouraçado Potemkin”, que, como não causa espécie a ninguém, se passa em 1905, ainda na vigência do Império dos Romanov, que se estendia desde 1613. Essa intrepidez dos desbravadores da produção audiovisual russa, tanto na essência como na superfície, continua a definir as histórias que saem do país e ganham o mundo, graças à sensibilidade do espectador, que não confunde um povo e sua arte com homens cruéis que nunca deixam de chegar ao trono, onde quer que seja.
“Major Grom Contra o Dr. Peste” segue esse postulado à risca. O longa de Oleg Trofim conta com nada menos que sete (!) roteiristas, talvez um indício do obsoleto modus operandi socialista. Há mesmo alguma coisa de nostálgico na distopia neorrealista de Trofim, mas, felizmente, sem proselitismos de nenhum gênero. O enredo não contempla nada de mirabolante: o investigador desajustado a que o título se refere não tem muita paciência para protocolos e códigos de ética e acaba resolvendo seus casos da maneira mais eficiente que conhece, literalmente no braço, já que nunca usou armas. O que faz com que a história evolua é a maneira que o diretor acha para assinalar as diferenças entre o protagonista, um anti-herói que não tem a menor preocupação de agradar ninguém, sequer o público — e, por essa razão mesma, o captura — e o vilão declarado e seu entorno, que passaria tranquilamente por um paladino do bom, do justo e do belo, mormente em tempos em que, como na cacotopia orwelliana, palavras adquirem sentido oposto ao que deveriam querer significar.
O filme de Trofim tem alma, e essa alma tem nome. Tikhon Zhiznevskiy personifica o que, no fundo, todo cidadão de bem espera dos poderes institucionalmente constituídos, em especial da polícia. A sequência de abertura, em que o major Grom parte numa caçada a pé, bem ao seu gosto, atrás de bandidos que acabaram de assaltar um banco e intensificam a atmosfera de caos deixando um rastro de cédulas pelo caminho, escapando num furgão repleto de sacos de rublos com a porta aberta, dá uma medida inicial do que o longa irá propor. A empreitada de Grom, por óbvio, só o que faz é expô-lo ao ridículo, e no comissariado, as apostas sobre o dia em que esse mártir incompleto será afinal defenestrado são o grande passatempo da equipe, quase todos por agentes gordalhufos, frustrados e muito inoperantes. Tudo o que o protagonista evitou a todo custo ser ao longo de sua malfadada carreira.
Há respiros estimulantes em “Major Grom Contra o Dr. Peste”, como a interação entre o protagonista e o estagiário Dima Dubin, interpretado por Aleksandr Seteykin, e a sugestão do envolvimento amoroso de Grom com Yulia Pchelkina, a youtuber que se dedica a postar vídeos de investigações, papel de Lyubov Aksyonova. Ainda que não se concretize, esse arco é o que dá a graça de que um filme renitentemente linear como esse precisa. A forma como Yulia entra na vida do detetive é um dos acertos de Trofim, se não o maior, ao juntar ação, violência, drama e romance num único segmento. A parceria entre Aksyonova e Zhiznevskiy é o que faz da narrativa algo pouco menos descartável, não obstante o núcleo vilanesco, composto por Sergei Goroshko como Sergei Razumovsky, o magnata que patrocina o Dr. Peste encarnado por Dmitriy Chebotarev, ter seus momentos de realce, principalmente ao também apenas insinuarem, como Grom e Yulia, formar um casal.
Como há quase cem anos, o cinema russo jacta-se de sua vocação polissêmica, o que não deveria, mas é verdadeira prova de coragem de Oleg Trofim e seus atores. Querendo ser apenas um filme recreativo, “Major Grom Contra o Dr. Peste” igualmente deixa-se absorver sob a ótica da experimentação. E isso também é divertimento.
Filme: Major Grom Contra o Dr. Peste
Direção: Oleg Trofim
Ano: 2021
Gêneros: Ação/Aventura
Nota: 8/10