Autor nenhum consegue adaptar uma obra literária para o cinema de modo inteiramente verossímil. Sempre há que se fazer um ou outro ajuste, a fim de tornar fílmica uma narrativa originalmente pensada para o papel, e o caso se embaraça ainda mais quando abordam-se textos religiosos, independentemente do teor místico do que vai ali. “Noé” é o modelo cabal de enredo que desagrada, mesmo que só a uma ínfima parcela da audiência, pela riqueza de possibilidades. O filme de Darren Aronofsky foi mais malhado pelo público leigo (e religioso) que Judas Iscariotes em Sábado de Aleluia, ao passo que a crítica especializada teceu-lhe elogios fervorosos. Uma das histórias mais célebres de todos os tempos à luz da fantasia, o que se vê no trabalho de Aronofsky é o aprofundamento do conto distópico do patriarca hebreu encarregado de salvar a humanidade — que passa a se resumir apenas ao seu próprio clã — e um par de macho e fêmea de cada espécie animal, abrigados numa arca pantagruélica do dilúvio que inunda muito mais que Sodoma e Gomorra por quarenta dias e quarenta noites. O diretor extrai de alguns versículos do “Gênesis”, o primeiro livro da Bíblia, um épico dotado de violência, toques de filosofia e o máximo de rigor histórico que consegue.
O encantador em “Noé” é ver Aronofsky bancar suas ideias, a despeito de elas serem ou não rentáveis para a indústria. E, em sendo assim, o roteiro do próprio diretor em parceira com o amigo Ari Handel, neurocientista que conhecera dos tempos em que os dois passaram pelos prestigiosos bancos de Harvard, em Massachusetts, nordeste dos Estados Unidos, opta por apresentar um Noé um tanto diferente do que consagrou o senso comum. Vai-se descortinando por trás do personagem uma miríade de facetas, levando o público a reconhecê-lo como mais que o eleito de Deus para outra vez povoar a Terra e fundar uma nova civilização, tudo graças a suas virtudes. Aronofsky sugere que Noé teria sido encarregado da maior missão de sua vida simplesmente por descender de Set, o terceiro filho de Adão, homem feito à Sua imagem e semelhança, e Eva. Essa subtrama corre em paralelo à narrativa do alagamento, as duas fundindo-se de pouco em pouco a fim de se alcançar o clímax ao termo de quase duas horas.
Há mesmo discrepâncias cruciais entre o que se lê nas Escrituras e o todo apresentado por Aronofsky, embora não se configure blasfêmia alguma nisso. A história original não sofrera conspurcações, nem mesmo fora torcida, mas somente interpretada com criatividade por um artista seguro de seu talento e capaz de dominar seu ofício como poucos. Sempre haverá quem goste, bem como quem encontre incoerências — a exemplo da beleza dos protagonistas, que mesmo sujos, não se distanciam um milímetro do Olimpo de Hollywood. A esse propósito, o elenco, afinado, tem o condão de manter a história quente até o encerramento. Russell Crowe se mostra um ator maduro, dando a seu Noé a aura de martírio e tristeza que o personagem exige, um homem cujo temor a Deus o cega a tal ponto que nem mesmo sua família parece estar à altura de sua devoção, enquanto Jennifer Connelly como Naamé confere ao subtexto da relação do casal a dose de sentimento que começava a faltar — reproduzindo a parceria de sucesso em “Uma Mente Brilhante” (2001), de Ron Howard. O antagonista Tubalcaim, de Ray Winstone, meio-irmão de Naamé e uma figura do submundo que se desenvolve à margem dos desígnios do Criador, elabora seu papel como um arquétipo do indivíduo que considera Deus indigno de sua confiança; o Cam de Logan Lerman deixa claro a quem assiste por que vira o sujeito cruel que personifica o lado mais ignóbil do espírito humano na novo tempo que se abeira; e Emma Watson na pele de Ila, filha adotiva de Noé e tornada sua nora, é sempre uma presença deleitosa, também plena de conflitos e que, por essa mesma razão, o entusiasma e o desafia tanto.
Não é todo dia que um cineasta renomado vence cânones, derruba tabus e compõe uma obra densa como “Noé”, história bíblica que acha lugar para experimentações técnicas e postulados intelectuais delirantemente inspiradores. Ratificando um dos grandes ensinamentos do Filho do Homem, Darren Aronofsky, como o grão de trigo que cai na terra e sujeita-se à morte, produz uma lavoura copiosa numa indústria repetitiva e pasteurizada, em que filmes deslizam por esteiras rolantes sem se admitir interrupções, ad aeternum — nem mesmo para se deliberar sobre alguma coisa que, com efeito, valha a pena. “Noé” é um milagre.
Filme: Noé
Direção: Darren Aronofsky
Ano: 2014
Gêneros: Épico/Drama/Ação
Nota: 9/10