“Guerra ao Terror” é um rascunho do que Kathryn Bigelow pretendia dizer com mais método e muito mais clareza quatro anos depois, em “A Hora Mais Escura” (2012), retrato preciso da sucessão de insegurança, paranoia e medo generalizado em que os Estados Unidos e o mundo viram-se imersos desde o 11 de Setembro, quando, em 2001, o terrorismo arreganhara os dentes para a humanidade de forma mais incisiva, deflagrando um episódio que, felizmente, não deixou de inspirar o repúdio da comunidade internacional e de mulheres e homens que prezamos pelos valores civilizatórios que nos possibilitaram chegar até aqui com alguma ordem, sem prescindir da liberdade e da segurança individuais. É impossível entender um filme sem que se observem os detalhes perturbadoramente reveladores do outro, e no filme de 2008, a diretora, junto com o roteirista Mark Boal, propõe um vaivém de tensão que, se não funciona ao longo de todos os 131 minutos pelos quais a trama se alonga, mantém o público hipnotizado, esperando grandes reviravoltas num enredo que todos sabemos como vai terminar. Bigelow e Boal conseguem a mágica de incitar o espectador a defender heróis nem tão respeitáveis assim, que ganham a admiração da audiência exatamente por fazerem não o certo, mas o possível, descendo do pedestal dos semideuses para a lama com que os mortais comuns erigem seus sonhos inúteis de uma vida menos ordinária — e menos tétrica.
O texto de Boal investe num clichê quase inconfessável, tanto mais se se considera a força que o politicamente correto ganhou nas últimas duas décadas, e aponta para a evidência óbvia de que a guerra vicia, ou, nas palavras de Phillip Knightley (1929-2016) em “A Primeira Vítima” (1978), clássico da reportagem em que o jornalista australiano promove um estudo de fôlego acerca dos grandes conflitos bélicos no transcurso de 120 anos, dos embates na Crimeia (1853-1856) ao Vietnã (1955-1975), “a guerra é divertida”, paralelo extemporâneo para infâncias felizes de marmanjos entediados. O sargento William James é um desses sujeitos que encaram a rotina de pilotar tanques, armar barricadas, passar tropas em revista e, claro, estraçalhar os corpos dos adversários a tiros de fuzil e lançamento de granadas como um trabalho que o desvia do comodismo, da mesmice, da inação, ainda que possa restar-lhe uma ponta de inquietação ética. O texto de Boal rebusca o potencial cínico da história, acertando ao pintar James como um guerreiro muito mais comprometido com seu papel no esquadrão antibombas do Exército dos Estados Unidos que com os gestos de camaradagem aos outros soldados, o que implica a desconfiança e mesmo a abominação velada com que passa a ser encarado depois do incidente com Matt Thompson, o militar de igual patente vivido por Guy Pearce. A ação de “Guerra ao Terror” desenrola-se no Iraque, mas quantos episódios semelhantes não terão ocorrido para muito além do intervalo coberto por Knightley em suas anotações, especialmente na participação ianque no Afeganistão e na Líbia, por exemplo, com a América dedicada a livrar o povo da interferência nefasta do Estado Islâmico, ao passo que dizimava esse mesmo povo? James, composição engenhosa de Jeremy Renner que poderia, com todo o mérito, ter-lhe valido o Oscar de Melhor Ator a que foi indicado, é mesmo o único capaz de desarmar as bombas que seguem colocando sob ameaça a vida, e o pior, o moral do grupamento porque, na substância, é feito do mesmo barro que aqueles homens, a despeito do componente facinoroso que o aparta deles. O personagem de Renner, um dos anti-heróis mais instigantes da história do cinema, é o próprio cavaleiro da (des)esperança que nasce em toda guerra, encarnando o caos e a ordem (possível) em igual medida.
As cenas que o protagonista divide com Anthony Mackie acrescentam ao filme o bocado das humanas incoerências que dão uma macabra legitimidade as guerras e, como nem tudo pode ser apenas hediondez, justificam trabalhos como este. Com sua prudência, seu zelo pela observação estrita dos procedimentos de segurança num terreno irremediavelmente movediço e, acima de tudo, seu patriotismo sincero, mas desperdiçado em operações de que não frutificam resultados palpáveis na recondução da política externa dos Estados Unidos e na assepsia da imagem do país junto à comunidade internacional, o sargento J.T. Sanborn de Mackie é também, a seu modo, um cadáver que procria, espalhando o germe do medo em sua configuração mais danosa e mais vasta. James pelo menos tem a seu favor a astúcia de não sonhar.
Filme: Guerra ao Terror
Direção: Kathryn Bigelow
Ano: 2008
Gêneros: Guerra/Ação/Suspense
Nota: 9/10