Filme na Netflix que conta a história do espiritismo vai fazer você refletir sobre o que estamos fazendo no planeta Divulgação / Sony Pictures

Filme na Netflix que conta a história do espiritismo vai fazer você refletir sobre o que estamos fazendo no planeta

Encarcerado à vida que podia ter, Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869) é um homem à procura de explicações até que, afinal, viver parece adquirir outro sentido, um valor que não se encontra neste mundo, a urgência da transformação. O protagonista de “Kardec: A História por Trás do Nome” era um sujeito pacato, como qualquer outro, decerto acostumado a ela e quiçá feliz, no modelo de felicidade que permitiam sua época, as pessoas com quem convivia, o governo autocrático que regia suas ideias, vontades e ações, e com os quais, de uma maneira ou de outra, terminava por aquiescer. O carioca Wagner de Assis faz o registro da metamorfose de Rivail, um professor de filosofia para crianças em Allan Kardec, um dos pregadores mais bem-sucedidos e controversos de seu tempo, sem comparações com outros profetas e práticas religiosas e espiritualistas diversas, somente apontando o desconforto interior de alguém preocupado com o mundo que deixaria a Louise, a filha que adotara com Amélie-Gabrielle Boudet (1795-1883), e às futuras gerações de espíritos atormentados como ele.

Baseado em “Kardec —A Biografia” (2013), do jornalista Marcel Souto Maior — cuja lavra abrange também “As Vidas de Chico Xavier” (1994), que inspirou “Nosso Lar” (2010), outro longa a cargo de Assis, aberto entusiasta do assunto —, o roteiro do diretor e L.G. Bayão é marcado por passagens entre reais e eminentemente fantasiosas, que só fazem sentido para os que creem, mas sem dúvida mesmerizantes, como a registra o primeiro contato de Rivail com sessões de incorporação, curiosamente levada ao redor de uma mesa forrada de negro. Como se sabe, os encontros nos centros kardecistas hoje se dão em salas que os arquitetos e decoradores contemporâneos tachariam de clean, com amplas janelas, iluminação natural abundante, de preferência ao ar livre e, por óbvio, com todos vestidos de branco, sentados à uma mesa coberta de pano da mesma cor. Nessa cena de abertura, não obstante a tal mesa levitar sem que seja preciso que a meia dúzia de pessoas ali diga nada, Assis e Bayão não deixam margem para interpretações equivocadas sobre rituais de magia negra ou procedimentos que tais. Na verdade, os seis irmanam-se num objetivo comum, benemerente e humanista, mas que não sabem definir. A fotografia de Nonato Estrela preserva o quadro sempre à meia-luz, inclusive nas tomadas externas de uma Paris ligeiramente modificada por computação gráfica, o que confere à narrativa um tratamento noir elegante e adequado ao se vai deslindando, especialmente no segundo ato, inaugurado quando o personagem de Leonardo Medeiros, até aquele instante atendendo pelo nome que ganhara dos pais, Jean-Baptiste e Jeanne Louise, recebe de seu espírito-guia o pseudônimo com que o mundo o conhece — a esse respeito, um diálogo entre Medeiros e a senhora De Plainemaison, a médium interpretada por Guida Vianna, guarda uma blague cheia de picardia quase ingênua. Quase.

“Kardec: A História por Trás do Nome” é muito mais fluido e mesmo muito mais involuntariamente didático que o blockbuster “Nosso Mundo”, costura de excertos dos livros psicografados pelo médium mineiro Chico Xavier (1910-2002), ao que se junta a direção certeira, enxuta de Assis, e o desempenho do casal de protagonistas. Durante quase todos os 110 minutos de projeção, Kardec surge acompanhado de Amélie-Gabrielle, sua Gabi, com Sandra Corveloni sorvendo o texto com visível prazer. Nos raros momentos em que dispensa a colega, Palma de Ouro de Melhor Atriz no Festival de Cannes por “Linha de Passe” (2008), de Daniela Thomas e Walter Salles, Medeiros toma conta do filme ao reafirmar a condição humana de Kardec, que perde a esgrima intelectual para o suicida que se atira da ponte Nova para o Sena gelado e revolto de uma Paris desde sempre hipnotizada pelo livre-pensamento de Galileu Galilei (1564-1642) e René Descartes (1596-1650), revisitado à luz de Voltaire (1694-1778) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).

“O Livro dos Espíritos” (1857), a obra mais famosa de Allan Kardec, foi traduzido para vinte idiomas e já vendeu mais de trinta milhões de exemplares. Nada mal para o que parecia uma moda efêmera — ainda que de quando em quando substituída por Gasparettos e Divaldos.


Filme: Kardec: A História por Trás do Nome
Direção: Wagner de Assis
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Religioso
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.