A inteligência artificial, como se poderia antever desde o início, tornou-se uma ameaça à humanidade e, em tudo caminhando na presente toada, não demora a chegar o dia em que de inimiga silenciosa passará a uma adversária desleal, ardilosa e perversa, somente emulando os mais de 140 mil anos de truculência do homo sapiens, fervida e refervida nos caldeirões da ganância, do poder a todo custo e do ódio. “Anon”, sátira a um só tempo mordaz e quase romântica de Andrew Niccol, escarafuncha dados históricos a fim de alcançar uma conclusão plausível sobre em que momento toda noção de decoro, de defesa do bem comum, de altruísmo, por mais delicada que fosse, embicou num processo de permanente ruína até que estivéssemos todos no ponto em que achamo-nos hoje: acuados por inimigos cujo poder não somos capazes de mensurar, tentando extrair alguma lição de nosso arrependimento tardio, que não se furta a nos martirizar com as revelações que lança-nos ao rosto sem condescendência.
A paranoia da insegurança que nos cerca a todos é o grande assunto do roteiro de Niccol. Um sistema de vigilância extrema liquidou qualquer hipótese de se burlar a lei, mas Sal Frieland, o policial vivido por Clive Owen, encontra quem possa reverter o processo. Nesse ponto, o diretor-roteirista já se dedica a tecer suas perturbadoras especulações acerca da interferência do Estado na vida particular de cidadãos comuns, o que, justiça se lhe faça, é uma de suas especialidades, e há algum tempo. Em 1997, Niccol se aventurara pelo maravilhoso universo da genética e com “Gattaca” ecoara as pesquisas de James Watson e Francis Crick (1916-2004), biólogos moleculares que fizeram da genética sua verdadeira profissão de fé, empreitada que vinha de mais de quatro décadas antes. “O Preço do Amanhã”, de 2011, corrobora seu interesse pela física quântica do alemão Albert Einstein (1879-1955), refinada pelo pensamento destemidamente arrojado de Stephen Hawking (1942-2018), elucubrando a respeito da reformulação da estrutura cronológica do modo como a conhecemos, e acrescendo à teoria do britânico elementos do cânone marxista mais simplório, a exemplo da ideia de mais-valia, nada mais que o tempo que se leva para que uma mercadoria fique pronta, base sobre a qual a indústria projeta suas estimativas de lucro, sustentáculo de todo o regime capitalista. “Anon” coroa uma espécie de trilogia em que Niccol se alonga sobre a ciência sob a forma de aliada e de carrasco do homem, obtendo aqui seus resultados mais felizes.
Anon, a propósito, é uma mulher. A personagem-título de Amanda Seyfried é perseguida pelo detetive de Owen porque, claro, desperta suspeitas graças a algumas condições bastante peculiares. O mote central, delirantemente nonsense, aflora no primeiro ato indicando duas direções contrárias, uma voltada à protagonista mesma, e outra, muito menos óbvia, na qual a narrativa envereda para o futurismo do Philip K. Dick (1928-1982) de “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?” (1968), o romance de ficção científica que seduziu Ridley Scott e Denis Villeneuve e metamorfoseou-se em “Blade Runner – O Caçador de Androides” (1982) e “Blade Runner 2049” (2017). Para fisgar de vez a audiência — e oferecer um providente respiro à malhação intelectual que constitui o filme —, o diretor aposta num dinamicíssimo jogo de gato e rato entre Sal e Anon, além de fomentar um instigante whodunnit, vinculado a um dos homicídios da trama, o que, naturalmente, agrava a situação da anti-heroína de Seyfried, cujo desempenho, aliás, eclipsa o mocinho cinquentão em umas tantas passagens.
A fotografia de Amir Mokri, sempre em tons esmaecidos e mesmo lúgubres, ratifica Nova York como a capital interplanetária das distopias, pelo caráter invejavelmente plural da Grande Maçã, onde tudo cabe. Quiçá se conserve assim — isso se os robôs diabólicos e os sistemas apocalípticos que o homem teima em inventar não transformar-nos o gênero humano num exército de Anons, caçados sem saber qual foi o nosso crime.
Filme: Anon
Direção: Andrew Niccol
Ano: 2018
Gêneros: Ficção científica/Thriller
Nota: 8/10