Criar filhos talvez seja a maior aventura a que alguém pode se lançar, e por eles decerto se aprende logo que há sempre uma vasta chance de tornar um pouco mais elástica a fronteira do que se pode tolerar ou não. A mãe a que o título do filme da neozelandesa Niki Caro refere-se não abdica de uma carreira duvidosa — e ainda que o fizesse, não adiantaria muito —, mas aceita com alguma resignação o destino de virar uma exilada em sua própria vida, pária a reboque do que deliberam sem sua licença, e, pior, trânsfuga de confrontos em que é implicada a despeito de sua vontade. Caro sai de um ponto bastante genérico até aproximar-se, lentamente, do objeto de seu trabalho, qual seja, o laço desfeito de duas pessoas que não deveriam separar-se, momento em que o cerco se fecha incontornavelmente, sem chance de que, um dia, tudo volte ao ponto inicial.
Pelo amanhecer lúgubre em tons profundos de azul no subúrbio tranquilo de Linton, Indiana, no centro-oeste americano, não se pode conhecer direito o que uma casa de padrão médio tem de extraordinário. Trata-se de uma base do FBI que investiga o tráfico de armas por uma quadrilha internacional liderada por Adrian Lovell e Hector Álvarez, os chefões do submundo encarnados por Joseph Fiennes e Gael García Bernal, particularmente hábeis em fugir do acossamento da polícia federal dos Estados Unidos. O agente William Cruise, de Omari Hardwick, bota a fita 703 para rodar, às seis e catorze da manhã, e começa o interrogatório. Cruise pergunta sobre inclementes metralhadoras soviéticas PKM, minas terrestres M18 diabólicas e lança-foguetes de origem suspeita à cativa que mantém sob sua tutela, até que o que parecia inevitável, enfim, acontece.
A introdução, como se obedecesse ao curso de uma arma de guerra, cujo vigor da substância só se pode cotejar ao refinamento do propósito, deixa o espectador maravilhadamente confuso frente a tanta ação e tantos detalhes de um golpe, e o roteiro de Andrea Berloff, Misha Green e Peter Craig se conserva tenso, aproveitando bem as possibilidades de evolução de aspectos secundários da trama até o final. A mãe sem nome de Jennifer Lopez é caçada por saber demais, e mesmo sob a custódia do Estado, está em perigo. Isso fica claro no momento em que Álvarez chega à sorrelfa, exatamente da maneira como previra, e faz chover sobre ela e o personagem de Hardwick uma troada de chumbo grosso, que vitima com gravidade o policial. Quanto a Mãe, o ataque do vilão de Bernal — aparecendo de modo bissexto e sem muita firmeza —, Caro já abre nessa sequência o segredo de polichinelo a unir Álvarez à anti-heroína de Lopez, momento em que o filme começa a fazer sentido.
Até o encerramento, quando a diretora trata de jogar as fichas que restam e pulveriza qualquer dúvida a respeito da verdadeira essência de sua anti-heroína, “A Mãe” é uma sucessão bem conduzida de cenas rápidas, vigorosas, pródigas dos lances inauditos em que Lopez exerce a versatilidade que define seu trabalho no cinema. A esperança de romance com Cruise perde velocidade à medida que Zoe, a verdadeira mocinha, de Lucy Paez, mostra a que veio, e tudo fica tanto mais sensato com a fotografia precisa de Ben Seresin, que conserva a atmosfera noir deslindada no preâmbulo.
Filme: A Mãe
Direção: Niki Caro
Ano: 2023
Gêneros: Mistério/Aventura
Nota: 8/10