A pandemia de covid-19 foi mesmo um grande baque para nós, vulneráveis homens e mulheres cada vez mais perdidos num mundo em que não nos reconhecemos e que não nos tem nenhum apreço. Naturalmente, até em meio às hecatombes mais perversas a marcar o curso da História, há os que sofrem numa escala draconiana, que cria suas próprias regras e escolhe seus raros vencedores, e é disso que trata “A Multidão”. Anubhav Sinha vai ao cerne de uma questão dolorosa, sobretudo num país de dimensões colossais como a Índia, em muito semelhante a tantas outras nações em desenvolvimento, mas que padece de chagas muito suas, todas, de modo geral, ligadas ao indefensável sistema de castas. Sinha cumpre seu papel e se vale da condição de membro de uma diminuta elite a fim de denunciar os problemas que todos conhecem, sobre os quais todos têm opiniões categóricas e elabora soluções mágicas, trabalhando com a verdade dos fatos. Uma postura corajosa e urgente.
A noção da vida como uma experiência plena, sempre marcada pelos episódios de enfrentamento que lhe conferem densidade, contornos dramáticos, potência, significado, enfim, e que se arranjam de forma mais ou menos célere à medida que encontramos um ambiente que convida à discussão de seus tantos raciocínios antagônicos, complementares numa espiral de avanços e retrocessos, negativas e afirmações, está, por óbvio, intrinsecamente vinculada à ideia e à prática da liberdade a que cada um jamais deixa de ter direito, imediatamente remontando ao surrado e incontornável livre-arbítrio, trampolim de onde o homem se lança para sua redenção ou seu calvário. O roteiro do diretor, Saumya Tiwari e Sonali Jain, explora muito do que a conjuntura de uma melancolia tornada em desespero, em indignação e em furor engloba num silêncio incômodo, quase opressivo, sentimento que se exacerba com a fotografia em preto e branco de Soumik Mukherjee. Sinha faz de “A Multidão” um filme indiano atípico, sem toda aquela cor e todo o brilho que encharcam a tela das produções da Índia, decisão cujo acerto fica por um triz de ser eclipsado pela onipresente cantoria que infesta o cinema de Bollywood mesmo em se lidando com temas tão pouco auspiciosos. Treze dias após o primeiro lockdown, a política de confinamentos à força de leis de emergência e restrição dos chamados serviços não essenciais, a desinformação espalha-se mais rápido que o coronavírus, provocando um êxodo massivo de milhares de habitantes de aldeias pobres do interior da Índia, fugindo sem saber ao certo do quê, convictas de que sua sorte poderia estar desafortunadamente selada se não tomassem uma atitude. Máscaras e outros insumos para a contenção da peste são insuficientes, e, então, as autoridades se veem instadas a contra-atacar com medidas que alguns néscios tacharam de antidemocráticas, como a interdição das fronteiras. O diretor especula, com saborosa ironia, sobre a possível excelência do sistema imunológico de quem se arrisca conscientemente em travessias nas quais as respectivas cargas virais multiplicam-se sem freio; nesse movimento, Surya Kumar, um oficial das forças de segurança de Prayagraj, tenta manter a ordem, embora confrontado com tentativas de carteirada, desmandos do governo central e as imposições que dita a si mesmo quanto a cumprir sua função do modo mais digno. Rajkummar Rao faz justiça ao título de grande astro da indústria cinematográfica da Índia e, de quebra, mesmeriza o público encarnando um herói quase sobre-humano. Boa parte do mérito de “A Multidão” cabe a ele.
Filme: A Multidão
Direção: Anubhav Sinha
Ano: 2023
Gênero: Drama
Nota: 8/10