O documentário mais brutal e impressionante de 2023 acaba de estrear na Netflix Divulgação / Netflix

O documentário mais brutal e impressionante de 2023 acaba de estrear na Netflix

As atrocidades registradas em “Vítima X Suspeita” tornam inequívoca a necessidade do jornalismo — e de profissionais que o honrem — na era da inteligência artificial. O espectador tem essa percepção já nas cenas que abrem o documentário de Nancy Schwartzman, que mesmo deixando subentendida uma ideia romanceada da atividade, serve de alento para quem se sente ultrajado com certos expedientes de que valem-se as autoridades em nome da lei e da ordem, o que, não raro, coloca a perder anos de investigações, uma montanha de dinheiro do contribuinte e, decerto o pior, a credibilidade e o senso de justiça entre a opinião pública. Nome de peso em meio à novíssima vertente de cinejornalistas americanos, Schwartzman tem se feito notar por trabalhos em que consegue ir ao fundo da investigação de fenômenos que terminariam abafados ou mesmo reescritos ao sabor das circunstâncias e dos poderosos da vez, o que sem dúvida é, uma evidência inconteste de que os tempos, a pouco e pouco, mudam. O que se lamenta é que isso ocorra com muito menos frequência em países que fazem da liberdade de expressão um apanágio para se cometer ilicitudes de toda sorte, o que eiva de descrença iniciativas que poderiam mudar os rumo de gerações e transformar sociedades ávidas por um progresso que não chega nunca em potências à altura dos desafios com que há de defrontar-se num futuro iminente. Cada povo com suas escolhas.

Rachel de Leon tem a justa medida sobre a importância de seu ofício. De Leon, uma jornalista old school apesar do jeito de universitária aplicada, toma boa parte da hora e meia de “Vítima X Suspeita”, relatando passo a passo seu método de trabalho ao debruçar-se por quatro anos numa matéria daquelas que fazem a alegria de todo repórter. A diretora esboça um passeio rápido pela carreira de De Leon, que grava passagens para um de seus primeiros trabalhos no Centro de Jornalismo Investigativo de Oakland, Califórnia, uma escola algo experimental fundada em 1977, conhecida e respeitada por conferir um respiro muito maior que o padrão a suas coberturas. Depois de um tempo considerável atuando como estagiária e assistente em trabalhos dos colegas veteranos, a jornalista encontra a brecha que tanto buscava para encampar a pauta que a intriga desde sempre, burilada um pouco mais à custa de noites maldormidas, idas e vindas ao longo de todo o território dos Estados Unidos, entrevistas por terminar, declarações a colher. Os telejornais passam a dar atenção aos casos de garotas jovens, de classe média baixa e algumas com um histórico de infrações de baixo potencial ofensivo, envolvidas em crimes de denunciação caluniosa e falsa comunicação de crime, delitos passíveis de cadeia e processo civil. Nada de se encher os olhos, salvo por um detalhe.

O faro de De Leon a leva a assistir incansavelmente a dezenas de fitas com os interrogatórios, plenos de ilegalidades, das acusadas, que, conforme insinua o título do filme, deixam a condição de mulheres humilhadas no que alguém pode ter de mais íntimo e valioso para se cobrir com o pesado manto da ignomínia. O depoimento de Emma Manion, uma estudante de New Hampshire, Nova Inglaterra, no sudeste americano, marca o início das criteriosas averiguações da repórter. O detetive Jared Akridge, uma figura que De Leon não consegue alcançar — nem ela nem ninguém — é, com efeito, o símbolo de uma força que se deteriora diante de sua comunidade e de toda a América, coagindo vítimas até que elas digam o que sua visão de mundo preconceituosa, tacanha, cruel admite ser o desfecho adequado para essas ocorrências. Manion e outras três garotas ouvidas pela jornalista tiveram a sorte que Megan Rondini não teve. Rondini, uma jovem de Tuscaloosa, no Alabama, cometeu suicídio aos vinte anos, perseguida pelos ex-colegas e vizinhos. Seus pais entraram com uma ação contra o Estado e ganharam, mas isso não serviu-lhes de consolo. Atualmente, são cometidos 463.634 mil estupros nos 52 estados americanos ao termo de doze meses; desses, apenas 30% viram denúncia, e só 1% das investigações acabam em punição para os criminosos.


Filme: Vítima X Suspeita
Direção: Nancy Schwartzman
Ano: 2023
Gêneros: Documentário
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.