Filme da Netflix te levará para dentro dele e fará 95 minutos parecerem o resto de sua vida Divulgação / Jessica Kourkounis

Filme da Netflix te levará para dentro dele e fará 95 minutos parecerem o resto de sua vida

Cineastas de não-ficção podem apresentar pontos de vista um pouco menos etéreos para a compreensão de assuntos que restam excessivamente líricos sob a perspectiva de diretores que sempre tiveram a imaginação por primeiro instrumento de trabalho. Em 2020, Liz Garbus julgou que talvez fosse a hora de encarar a missão de emprestar seu talento ao cinema ficcional e dessa reflexão nasceu o vigoroso “Lost Girls: Os Crimes de Long Island”, no qual traz a lume o que consegue absorver de um dos casos não resolvidos que mais aguçou a glutonaria da imprensa marrom e questionou a capacidade da polícia na História contemporânea dos Estados Unidos. A travessia de um para o outro lado foi quase orgânica, e, por óbvio, Garbus emprega a tarimba no documentário para reforçar a evidência de realidade desta trama, dispondo do roteiro do igualmente talentoso Michael Werwie, autor do ótimo “Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal” (2019), levado à tela por Joe Berlinger. O premiado “What Happened, Miss Simone?” (2015), vencedor do Emmy de Melhor Documentário para Televisão em 2016, fez com que Garbus começasse a ser notada por Hollywood. A carreira do longa, uma sequência de excelentes imagens de arquivo da vida e da obra da cantora e ativista Nina Simone (1933-2003), lançado em 22 de janeiro de 2015 no Festival Sundance de Cinema e indicado ao Oscar de Melhor Documentário um ano depois, cacifou Garbus para desafios ainda mais perturbadores, como o de não permitir que resvalasse para o indigesto dramalhão moralista um enredo que só faz sentido se apreciado frente ao ridículo e mesmo ao patético das relações entre pessoas que se amam, malgrado quase nunca possam entender-se.

Ser mãe é um atentado à racionalidade. Mulheres passam nove meses carregando no ventre uma forma de vida um tanto enigmática, extensão de seu próprio corpo, mas dotada de um organismo só seu. Expirado esse tempo e parida a criança, chega a hora de dar o peito por meses a fio — há quem aconselhe a levar a amamentação até, pelo menos, os dois anos de idade do pequeno, e, mais surpreendente ainda, há quem o consiga —, depois ensaiar a transição para a mamadeira, que se pretende breve, e nesse ínterim, são gastas montanhas de fraldas e pilhas e mais pilhas de lenços umedecidos. O momento em que o filho se mostra apto a usar o banheiro sem grandes traumas, sempre com a supervisão materna, é a senha para a primeira separação, extremamente angustiante para os dois, cada qual sentindo-a a seu modo. Na escola, aquela criatura por se formar, em constante progresso, começa a aprender que, como ela, há outras dezenas, reivindicando o mesmo espaço, os mesmos brinquedos, a mesma atenção da professora, a mesma vontade se destacar do restante da classe. Não se passaram nem cinco anos e aquela mulher que se atreveu a gerar uma pessoa, agora com algum grau de independência de seus cuidados e, por conseguinte, também dotada de necessidades muito suas, depara-se com a realidade de que, ao contrário do que pode sugerir o instinto (e o filosofismo barato de certos pseudomanuais de psicopedagogia), filhos se esmeram por se diferenciar de seus pais desde que sentem a luz do mundo estimulando-lhes as retinas incompletas. Reagir positivamente a um tal desaforo da natureza redunda em dois comportamentos básicos, opostos entre si. Algumas mães fingem entender que seus filhos estão decisivamente crescidinhos, mas terminam por arrastar seus desmandos, bem-disfarçados de amor, pela vida afora, enquanto outras pensam que amar é jamais estimular a autocrítica e a autocensura e supor que seu filho saberá tomar a melhor decisão em qualquer circunstância, que vai fazer aquilo que o fizer feliz, e, destarte, ela o será em igual proporção. Com uma frequência entre tediosa e perturbadora, mães notam com demasiada tardança que algumas ideias de seus filhos quanto ao que venha a ser felicidade conduz a todos os caminhos, menos ao da plenitude da alma. E reparar esse engano é uma tarefa para a qual, muitas vezes, já não acham mais força.

Nunca se vislumbra na Mari Gilbert de Amy Ryan qualquer vestígio de placidez; de felicidade, então, ainda menos. Percebe-se logo que essa é uma personagem sempre acossada por uma tensão qualquer — a pobreza severa, a realidade de saber-se irrelevante para o resto do mundo e não dispor do apoio de ninguém, a solidão ferina —, que se apossa dela sem oferecer-lhe chance de defesa quando a filha, Shannan, vivida por Sarah Wisser, desaparece como que por encanto em Ellenville, cidadezinha no extremo sul do estado de Nova York, em maio de 2010. A última a ter tentado falar com Shannan foi a irmã do meio, Sherre, da cada vez melhor Thomasin McKenzie, o que já é um pequeno sintoma do distanciamento gradual entre mãe e filha ao longo dos anos. A ficha começa a cair e a família se dá conta de que algo de muito funesto ocorrera à mais velha das três filhas de Mari quando a polícia confirma ter recebido uma chamada de emergência na noite anterior. É esse o gancho para que Garbus comece a desembolar alguns fios narrativos da trama em que o desaparecimento de Shannan se insere. Embora paralisada pelo horror, Shannan não contou com pronto atendimento policial, momento em que o choque dessa mãe, tomada de uma culpa que acaba por consumi-la, com Richard Dormer, o comissário vivido por Gabriel Byrne — outro desempenho em que não cabem retoques —, levam a história para uma boa crônica sobre autoridades ineptas quanto a desvendar crimes que vitimam pobres. A descoberta acidental de um terreno em que foram enterrados os corpos de quatro prostitutas, insinuando a atuação de um assassino em série que comete suas barbaridades movido por idiossincrasias morais (ou apenas puro ódio mesmo), suscita em Mari uma hipótese e uma convicção, uma mais mortificante que a outra. É muito provável que as duas jamais tornem a se ver e é indiscutível de que o modelo de criação adotado para as filhas, donas de seus próprios narizes (e de todo o resto desde muito cedo) foi um equívoco para o qual não há mais franja para reparação.

Às vezes se tem a sensação de que Garbus não tem elementos retóricos o bastante para encaminhar o filme para a conclusão mais humanista e mais lógica, e causa espécie sua capacidade de jogar com as expectativas do público —, mormente com a entrada em cena de Reed Birney como Peter Hackett, o médico que dá todas as pistas de ser o psicopata por trás dos crimes, mas que nunca é sequer molestado. Todavia, a diretora é também hábil em se concentrar no subtexto emocional de seu trabalho, que alcança o zênite com as informações dispostas numa tela negra, nos segundos finais do longa. “Lost Girls: Os Crimes de Long Island” constitui-se um trabalho primoroso ao mesclar quase à perfeição narrativa documental e suspense da melhor lavra; o epílogo, ao cabo de macérrimos 95 minutos, só faz tornar mais avassalador o sentimento de vazio diante do que se passa a saber a respeito da sorte daquelas mulheres.


Filme: Lost Girls: Os Crimes de Long Island
Direção: Liz Garbus
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Mistério
Nota: 9/10