Lutando contra seus impulsos, tentando dominar suas fraquezas, vulnerável aos movimentos que não pode entender — justamente aqueles que definem os rumos de como será sua vida frente às incessantes mudanças do mundo que o rodeia —, o homem garimpa no limbo as estrelas de seu firmamento. Desafiamo-nos a vencer nossos íntimos pesares como conseguimos, lidamos com nossas inadequações mais flagrantes ao passo que nos devotamos a interditar para nós o que sabemos ser a fonte do desassossego que nunca se manifesta em sua plenitude nefasta e que nos arruína o espírito em silêncio, até finalmente aflorar-se-nos à pele e revelar-se o monstro que em verdade é. Sozinho do berço ao túmulo, sujeito à vasta gama de intempéries que o intimida e o acossa com uma violência que nem sempre é capaz de tolerar, o gênero humano escapa por um triz a algumas trapaças do destino, é colhido por outras tantas, e, ainda, permite-se gostosamente enredar nas teias do imponderável, escolhendo lançar-se com tudo nas profundezas do abismo mais execrável mesmo depois de augurar todas as chances de evitá-lo.
Martin Heidegger (1889-1976), um dos pensadores mais completos — e complexos — da história, defendia a necessidade do recomeço como um dos eixos da vida do ser humano. Entre outros pontos, é fulcral no pensamento de Heidegger a valorização das muitas descobertas que o homem faz no decorrer de uma jornada que sempre lhe parece demasiado curta (e o é mesmo), mas que decerto vai ganhando cor, um viço inesperado, uma força qualquer poderosa o bastante para fazê-lo desviar do atoleiro ao passo que instiga nele a vontade recorrente de transpor os limites com que já se habituara, como se mais do que oxigênio, água e pão, tivesse de suprir-se antes de uma matula fornida de arrojo. A irrequietude do homem frente ao passar do tempo — obstinada, inclemente, cruel — e sua pletora de enigmas cuja solução é meramente umbrática, confere à natureza humana uma das raras certezas de que se tem o condão de pinçar desse território lodoso e edênico que é a vida: boas oportunidades vêm embaladas na aura de exclusividade que define como imperdoável um qualquer desperdício. Dizer que Pamela Anderson se desnuda frente às câmeras pode parecer uma blague um tanto grosseira (além de óbvia), mas é justamente essa a impressão que se tem ao longo dos 112 minutos do documentário sobre a eterna musa de “S.O.S. Malibu” (1989), uma mulher linda, sonhadora, valente e, roam-se os invejosos, sensível e culta. Ryan White faz um registro tocantemente intimista da estrela na história de amor em que todos nós, garotos esquisitos que frequentamos a praia para ler escutando a música ruim do vizinho de cadeira, nos sonhamos observando ao longe a beldade despontar das franjas do Pacífico qual uma Tétis platinada. Anderson nunca teve de peitar, com a licença do trocadilho, os pais para ser quem era e até ser começar a ser reconhecida pela série idealizada por Michael Berk, sucesso de público e crítica, febre mundial por onze temporadas e hoje cult, comeu o pão que o diabo amassou com o garfo, a colher e o prato que guardava como um tesouro no quarto-e-sala onde morou. A sereia, hoje uma loba de cinquenta e poucos, é uma mestra na arte de fazer do limão uma suculenta limonada, a tal resiliência, e figura na nossa seleção junto com outra meia dúzia de títulos, em que os protagonistas, em maior ou menor grau, valem-se de um dos infinitos contratempos do existir para ajustar a bússola e mudar de rota — isso quando a vida não imita a arte e o intérprete leva o personagem para a cama, a exemplo do que se passou com Idris Elba, o talento soberbo por trás do herói de “Luther — O Cair da Noite”, de Jamie Payne. Os sete filmes constam do acervo da Netflix, foram lançados neste 2023 e estão dispostos em ordem alfabética, tudo para fazer sua diversão o mais imediata possível, como só nós mesmos conseguimos.
À medida que “Agente Infiltrado” avança, mais nítida se torna a sensação de que já se sabe onde vai dar o filme de Morgan S. Dalibert. A vasta experiência do diretor em enredos que fundem ação, suspense e trapalhadas de uma polícia ora corrupta, ora bem-intencionada, mas perdida num sem-fim de necessidades jamais satisfeitas e às voltas com facções criminosas cada vez mais organizadas, renderam sequências capazes de manter o público numa expectativa quase perene, que só arrefece quando o número de cadáveres estendidos no chão supera qualquer chance de novas reviravoltas. É esse, contudo, o desafio de produções como “Agente Infiltrado”, que tem a seu desfavor abordagens ligeiras e pretensiosas sobre um tema sério e uma brusca mudança de rota no desfecho. Decerto a promissora abertura do filme é o ponto alto do filme. Cruzando uma paisagem agreste, uma camionete velha leva homens munidos de fuzis por uma estrada deserta; inesperadamente, o veículo para, e eles descem, arrastando consigo uma pessoa encapuzada até uma gruta. Parece que se trata de um sequestro, inferência quase verdadeira que Dalibert elabora com competência, e se antes a fotografia de Florent Astolfi punha ênfase na luz pálida que coloria o cenário com tons pastéis no areal invencível, na vegetação rala e no céu sem nuvens, dentro do calabouço a escuridão reduz a cena a um bloco maciço onde nada se define muito bem.
Rapidez, garra e um bacalhau enorme podem ser uma combinação insólita, mas só para quem não acredita. Essa é só a mais óbvia da pletora de conclusões que se desnovelam do enredo de “A Elefanta do Mágico”, a animação de Wendy Rogers produzida pela Netflix. Rogers parece saber muito bem a força que existe no que não se dá a ver, manifesta com todos os simbolismos em trabalhos como este. Compreende-se perfeitamente certa má vontade ao menor vestígio de histórias fantasiosas, protagonizadas por seres inanimados; entretanto, os comentários ranzinzas de adultos descorçoados, abatidos pela magia gorada de um dia após o outro, logo cedem espaço à sabedoria das crianças, fadas, duendes e elfos que nos rodeiam e nos revelam o caminho para uma terra encantada, onde nossos sonhos mais impossíveis não se cansam de esperar que renunciemos a nossa preguiça, a nossa covardia, a essa tendência natural e perdoável de se conformar com migalhas — inclusive (e principalmente) as que compõem os sentimentos que temos por mortos —, que nos salvou em tantas ocasiões. Peter, o candidato a herói dessa história, encara de igual para igual os conflitos da adolescência, aquela fase da vida em que a infância teima em ficar, mas é vencida pela biologia e pelo tão irresistível desejo de mudar.
Atores talentosos sentem-se no direito (e alguns mesmo na obrigação) de ousar — felizmente. Que outro predicado além da aptidão no modo de conduzir o próprio ofício, dando preferência a trabalhos considerados por muitos críticos como simples birra diante do pretenso desprezo de um diretor ou de um estúdio num filme de maior alcance, decerto, mas exasperantemente parecido com tantos outros, pode justificar a arriscada decisão de bancar a irresistível vontade de mudança, de inovação, de dar ainda mais vigor a uma carreira que vai de vento em popa? Não restou muito bem explicado o motivo que levou Idris Elba a ser desconvidado a dar vida ao espião mais famoso do cinema, mas Elba não passou recibo, conforme se assiste em “Luther: O Cair da Noite”. James Bond deu lugar a John Luther num drama que nunca descai para o óbvio e tampouco faz concessões ao entretenimento gratuito, malgrado esteja visceralmente imbricado a uma série de televisão tornada febre no Reino Unido ao longo de uma década inteira. A continuidade de “Luther” (2010-2019), a serie criada por Neil Cross e exibida pela BBC One, a principal emissora da rede BBC, sob a forma de um longa de mais de duas horas dispõe do protagonista na pele de um homem atormentado, anti-herói pleno de particularidades que mais o distanciam que o tornam objeto de paralelismos razoáveis com o tipo muito menos dramaticamente profundo criado por Ian Fleming (1908-1964).
Criar filhos talvez seja a maior aventura a que alguém pode se lançar, e por eles decerto se aprende que há sempre uma vasta chance de tornar um pouco mais elástica a fronteira do que se pode tolerar ou não. A mãe a que o título do filme da neozelandesa Niki Caro refere-se não abdica de uma carreira duvidosa — e ainda que não o fizesse, não adiantaria muito —, mas aceita com alguma resignação o destino de virar uma exilada em sua própria vida, pária a reboque do que deliberam sem sua licença, e, pior, trânsfuga de confrontos em que é implicada sem querer. Caro sai de um ponto bastante genérico até aproximar-se, lentamente, do objeto de seu trabalho, qual seja, o laço desfeito de duas pessoas que não deveriam separar-se, momento em que o cerco se fecha incontornavelmente. A introdução, como se obedecesse ao curso de uma arma de guerra, deixa o espectador atônito com tanta ação e tantos detalhes por minuto, e o roteiro de Andrea Berloff, Misha Green e Peter Craig se conserva tenso, aproveitando bem as possibilidades de evolução de aspectos secundários da trama até o final.
Uma das grandes vantagens de ser criança é viver experiências como a descrita em “Meu Amigo Lutcha” — descrita com a exatidão possível dos meninos pequenos, que fique claro. Jonás Cuarón toma a lenda mexicana sobre o chupa-cabra, uma fera meio escatológica que ronda pastos e galinheiros durante a noite para beber o sangue da criação, pelo seu avesso. Isto é, logo se sabe que por trás de todo o assombro que possa restar em tramas como essa, importante de fato é a maneira nada óbvia de que o diretor se vale para elaborar temas como a dor do crescimento, desajustes de família, solidão, amizade, que adquirem dimensão de verdadeira tragédia ao longo de certas quadras da vida. Cuarón lida até bem com a preconizada dicotomia entre glórias e maldições da infância, mas seu filme cresce mesmo é quando assume seu lirismo e faz uma aposta desabrida e firme na inocência oculta do mundo. Aqui, a maior lição talvez seja a que aconselha que escutemos as feras e não lhes invadamos o território. Sem mencionar aquela mais óbvia de se aceitar as diferenças — inclusive as que habitam em nós.
De quando em quando, os semideuses se cansam do Olimpo de onde observam o resto da pedestre humanidade e resolvem dar uma volta aqui embaixo, experimentando os prazeres e as dores dos simples mortais, sofrendo como eles, encontram aí, talvez, outra natureza de glória. É o que deixa subentendido “Pamela Anderson — Uma História de Amor”, recorte amplo da trajetória de um dos símbolos de como era a televisão nos Estados Unidos cerca de quatro décadas atrás e, principalmente, de como eram os bastidores da televisão num tempo caracterizado por um desprezo solene, ostensivo, revoltante pela dignidade de mulheres como Anderson, conscientes de sua aura de pecado numa América sempre puritana e hipócrita, mas esperta o bastante para safar-se das investidas dos cafajestes que, rejeitados, empenharam-se diligentemente — e num silêncio covarde — para eclipsar sua ascensão, o que, de fato, acabou acontecendo mesmo. Num trabalho de filigranas quanto a reconstituir a vida de sua biografada a partir desses cacos úmidos de lágrimas e sangue, Ryan White compõe um relato em que a degradação a que alguém tem de se sujeitar em nome do que acredita ser sua missão — e da fama, claro, que vem a reboque — ainda é a pedra angular do mundo do espetáculo.
Existem infinitas maneiras de se abarcar conflitos familiares, e a escolhida por Luis Estrada em “Viva o México!” tem qualidades que revelam-se cada qual a seu tempo. Dispondo de um talento raro para levar histórias que nunca se rendem ao óbvio, Estrada faz do roteiro, assinado com Jaime Sampietro, um passeio por boa parte dos temas que consegue desembaraçar tão bem em “O Inferno” (2010) e “A Ditadura Perfeita” (2014), a ponto de restar subentendido que compõem uma trilogia acerca das misérias de uma terra tão longe de Deus e tão próxima dos Estados Unidos, sentença atribuída a Porfirio Díaz Mori (1830-1915), presidente mexicano de 1º de dezembro de 1884 a 25 de maio de 1911, e repetida por uma personagem no desfecho. Marcas do filme, o humor ácido, a zombaria incansável, as subtramas que rompem a casca do absurdo e tomam a narrativa do jeito mais desapertado, com uma plêiade de atores assombrosamente certos do que estão a fazer, são detalhes que compõem um todo como não se tem visto com frequência no cinema atual, dando a sensação ambígua de que ainda há alguma esperança de se encontrar ouro em meio a tanto plástico descartável, mesmo que quem o procure seja a minoria.