O melhor filme da história recente do cinema, ganha edição em preto e branco, e está no Amazon Prime Video Divulgação / Warner Bros Pictures

O melhor filme da história recente do cinema, ganha edição em preto e branco, e está no Amazon Prime Video

“Mad Max: Estrada da Fúria” é a alegoria das alegorias do caos. Lançado em 2015, exatos trinta anos depois da última produção da franquia, “Além da Cúpula do Trovão”, de 1985, o novo trabalho do australiano George Miller jacta-se de sua excelência ao atirar ao rosto do espectador um mundo feito terra arrasada, onde alguns homens valem muito mais que outros, Deus fora obrigado a deixar de existir e, em sendo assim, tudo é permitido: Immortan Joe, o vilão caricato, mas pleno de nuanças de Hugh Keays-Byrne (1947-2020) dispõe de um harém muito ao gosto de um facínora paranoico com a continuação de sua dinastia teratológica, monstruosa, com amas-de-leite cuja única razão de existir é alimentar os filhos que gera com as mulheres que aprisiona. É-lhe outorgada uma superioridade sobre todos os infelizes que ainda restam, e, por evidente, é senhor da água, o bem mais precioso (e raro) num deserto de 150 milhões de quilômetros quadrados.

Nesse particular, o filme é riquíssimo. O argumento da vida depois do cenário do fim de tudo — a começar pelas ilusões —, é muito bem explorado por Miller, que numa juventude hoje embaçada pela bruma corrosiva do tempo, deu expediente em pronto-socorros como parte da residência em medicina, seu primeiro ofício. Decerto os dias transcorridos em meio a pacientes com fraturas expostas, traumatismos cranianos e pulmões encharcados serviram-lhe de norte para as imagens que consegue transformar no pesadelo lindo do qual ninguém quer ver-se livre, firmadas no roteiro progressivamente filosófico, assinado por ele, Brendan McCarthy e Nico Lathouris, reflexão das mais incômodas a respeito do quão abjeto pode ser o gênero humano. Apreende-se a completa falta de decoro de Immortan Joe, mas logo se entende que ele não está sozinho em seus hediondos propósitos. Tirano algum chega a ter hegemonia sobre o que quer que seja sem a aquiescência de ampla margem da sociedade que visa a comandar, e a História é plena de exemplos. Foi assim com Mao Tse-tung (1893-1976), Josef Stálin (1878-1953), Adolf Hitler (1889-1945), Saddam Hussein (1937-2006), Muammar Gaddafi (1942-2011) e ainda está sendo com Kim Jong-um, há dez anos. A fim de dar azo ao propósito da formação do novo homem, premissa de que se lançaram todos esses lunáticos e tantos outros, em maior ou menor medida, tendo sido Hitler o que melhor se apropriou desse “ideal”, há que se garantir que o mecanismo esteja muito bem azeitado. Além de mulheres que deem à luz os filhos da sua revolução e os nutra, Immortan Joe precisa de sangue que, como a água e o petróleo, no começo da série, em 1979, também vira um insumo de luxo, e por esse motivo Max é capturado. No cárcere, conhece Furiosa, a amazona biônica condenada a viver alijada de seu povo ao se atrever a desafiar Joe, o imortal, o que está acima de todos, o eleito, a personificação de toda divindade que ainda reste. Na transição do segundo para o terceiro ato, momento em que a trama assume de uma vez sua porção distópica e messiânica, Miller esclarece o motivo da perseguição do bárbaro à heroína pós-apocalíptica, emanando dessas sequências uma diatribe feminista que não empana em rigorosamente nada a força de tudo quanto se pudera ver até então.

O homem é mesmo o lobo do próprio homem, e Max Rockatansky sabe disso na pele. Aquele que fugia dos vivos — e dos mortos —, num mundo distópico que catalisa as profundas transformações (e as mais horrendas misérias) pelas quais passamos, Max, o louco, o suicida, o revolucionário, tenta se manter vivo frente aos desmandos de um facínora que concentra todo o poder por ser o intermediário entre a humanidade e o recurso fundamental à sua preservação: a água. Max, viajante das galáxias caído do rabo de um cometa qualquer para a dureza da vida num planeta tornado um areal sem fim, é capturado por Immortan Joe. Na cena de abertura, vitaminada na nova configuração em que o claro e o escuro transformam-se nas grandes estrelas do show, Tom Hardy contempla o mundo inteiro diante de si ao lado de seu Interceptor, basicamente a carroceria de um Ford Falcon cupê XB, usada também no filme original. O gênio de John Seale aproveita-se de detalhes invisíveis para olhares leigos e vai fundindo o mocinho de Hardy ao carro, que se amalgama a terra junto ao precipício, que por seu turno une-se ao céu, dando a justa medida da desordem e da falta de parâmetros, estéticos e éticos, nesse ambiente por ser desvendado. Quanto a Furiosa, um trecho pouco além da metade da história retroage ao conflito entre a antimusa e o antagonista de Keays-Byrne, que ganha mais ênfase aos planos abertos que exploram a ausência de cor, substituída à altura pelo tom de prata envelhecida que resplandece na justiceira que enfrenta o déspota. Charlize Theron, numa dinâmica exaustiva de ora pilotar as Máquinas de Guerra, ora desfiar os bifes quilométricos ditos pela personagem, vira uma figura mais afeta aos animes, graças aos contornos involuntariamente tridimensionais que sua silhueta ganha.

Indo além de assuntos de que trata com excelência, o diretor arranja mais sarna para coçar. A proposição da liberdade que uma mulher deseja conceder a outras mulheres que não gozam desse direito — o hoje tão propalado conceito de sororidade —, e que ela mesma, fracassando, passa a também não poder mais usufruir da autonomia de que desfrutara, é uma espécie de síntese de “Estrada da Fúria”. A anti-heroína abandona o prefixo de oposição, negação, e se apossa do caráter de redentora na história, heroína com todas as letras. O papel mais nobre num filme de macho feito esse cabe, perfeitamente, sem nenhuma condescendência, a uma mulher.

A tetralogia “Mad Max” deixa um gosto ruim na boca, um gosto de sangue, de ferro quente, um cheiro de pólvora no ar, mas nada desse incômodo se compara à mensagem que transmite, esta quarta e (por enquanto) última produção em particular. Tido por muitos sabidos como mero delírio da metafísica anti-imperialista, “Mad Max: Estrada da Fúria” é exatamente isso, a indicação de um caminho em que o homem pode se perder, de novo, mas dessa vez, dado o incremento de novos componentes destrutivos a uma conjuntura de aniquilamento já quase integral, de modo irremediável. Sem um leviatã, o monstro bonzinho da obra de Thomas Hobbes, ou uma Furiosa que nos valha.


Filme: Mad Max: Estrada da Fúria (Edição Black & Chrome)
Direção: George Miller
Ano: 2015
Gêneros: Ação/Aventura
Nota: 10