Existem infinitas maneiras de se abarcar conflitos familiares, e a escolhida por Luis Estrada em “Viva o México!” tem qualidades que revelam-se cada qual a seu tempo. Dispondo de um talento raro para levar histórias que nunca se rendem ao óbvio, Estrada faz do roteiro, assinado com Jaime Sampietro, um passeio por boa parte dos temas que consegue desembaraçar tão bem em “O Inferno” (2010) e “A Ditadura Perfeita” (2014), a ponto de restar subentendido que compõem uma trilogia acerca das misérias de uma terra tão longe de Deus e tão próxima dos Estados Unidos, sentença atribuída a Porfirio Díaz Mori (1830-1915), presidente mexicano de 1º de dezembro de 1884 a 25 de maio de 1911, e repetida por uma personagem no desfecho. Marcas do filme, o humor ácido, a zombaria incansável, as subtramas que rompem a casca do absurdo e tomam a narrativa do jeito mais desapertado, com uma plêiade de atores assombrosamente certos do que estão a fazer, são detalhes que compõem um todo como não se tem visto com frequência no cinema atual, dando a sensação ambígua de que ainda há alguma esperança de se encontrar ouro em meio a tanto plástico descartável, mesmo que quem o procure seja a minoria.
Uma melodia suave ao piano modera a cena funesta exibida na abertura, uma mansão suntuosa cercada de noite. Pancho Reyes, o engenheiro químico interpretado por Alfonso Herrera, volta para casa ao fim de mais um dia de trabalho duro na indústria de Don Jaime Sampaolo, de José Sefami — as sequências em que os dois contracenam são, de longe, a melhor coisa do primeiro ato —, a fim de rever a esposa, María Elena, a Mari, e os filhos, Toni e Cati. O núcleo dos Reyes, com Ana de la Reguera, Raphael Camarena e Mayte Fernández, conferem humanidade quase insuspeita a um tipo denso e escorregadio como o anti-herói de Herrera, que comprova o que diz dele o chefe, um homem de origem humilde que só pôde ascender na vida graças a dedicação integral e trabalho duro, o que, por seu turno, nunca seria possível sem a coragem de deixar o vilarejo de La Prosperidad, em Chiapas, sul do México, e o apoio de Mari, que não demorou a se transformar numa dondoca sucumbindo a uma irrefreável compulsão por gastar. O texto de Estrada e Sampietro vão dando pistas quanto ao que se vai assistir nos segundo e terceiro atos, colocando em tela os pesadelos que assaltam seu protagonista com frequência cada vez maior, até que, efetivamente, se dá o princípio de sua desgraça: uma telefonema de Rosendo, o pai vivido por Damián Alcázar, curinga nos filmes do diretor, participando-lhe da morte do avô, Francisco, exige que se desloque à cidade natal e reveja uma família de desvalidos, ignorados pelas autoridades, decerto, mas antes disso, mandriões e invejosos — como bem os classifica Pascuala, a avô, da impagável Angelina Peláez, a única com brios ali — e, com, alguma razão, coléricos com um desejo nada sensato do patriarca morto.
O andamento de melodrama farsesco poderia descambar para o ridículo se conduzido por alguém pouco menos cauteloso que Estrada, que trilha essa senda mais e mais convicto do que deseja, e obtém uma história saborosamente complexa de se definir. O pano de fundo da algaravia política que grassa no México desde Hernán Cortés (1485-1547), claro, não falta em outra das obras-primas de um pensador de sua arte, sua cultura e seu povo, a exemplo do que fazem os argentinos Gastón Duprat, Mariano Cohn em “O Cidadão Ilustre” (2016), outros dois latino-americanos que transformam em análise sociopolítica a intimidade que enxergam para além de dramas íntimos.
Filme: Viva o México!
Direção: Luis Estrada
Ano: 2023
Gêneros: Comédia/Melodrama
Nota: 9/10