Faroeste hipnotizante, da Netflix, vai te levar para dentro dele David Lee / Netflix

Faroeste hipnotizante, da Netflix, vai te levar para dentro dele

Tragédias pessoais moldam o caráter dos homens, tanto deixando mais amena sua apreensão sobre a vida, ou, pelo contrário, fustigando-os com tal ímpeto que aprisionam-se na ideia de que merecem uma revanche. Na busca desesperada pela oportunidade de acertar as contas com um momento de seu passado, o protagonista de “Vingança e Castigo” consta no segundo estrato. O debute de Jeymes Samuel no comando de um longa — Samuel, também conhecido por The Bullitts em sua atuação como músico, já havia feito o curta-metragem “They Die by Dawn”, em 2013 — não é um primor de inovação quanto ao gênero, mas o diretor se empenha em conduzir seu elenco afinado rumo a um épico de faroeste, uma das gratas surpresas do cinema contemporâneo, dada a inventividade e a ousadia com que constrói sua história.

Jonathan Majors é, sem dúvida, uma das razões do sucesso do filme. Encarnando Nat Love, o líder de uma gangue que assistira à morte brutal dos pais por Rufus Buck, do também ótimo Idris Elba, o ator revela, enfim, uma faceta de seu talento que passou despercebida a outros realizadores. Majors faz de seu personagem um vilão medonho, mas não que deixa de ser carismático, principalmente quando entra em cena Zazie Beetz na pele da sensual Stagecoach Mary, um ex-caso de Nat Love, com quem bate uma bola redonda até o desfecho da história. Quanto ao embate com o antagonista de Elba, o arco dramático enraizado no confronto que dá azo à trama desenrola-se com uma moderação insólita em trabalhos desse jaez, porque Buck, o vilão assumido, cumpre prisão perpétua, até ser inexplicavelmente anistiado de seus crimes. Se levava uma vidinha pacata, evitando meter-se em encrenca (ainda que nem sempre conseguisse), o anti-herói de Majors resolve por assumir de vez seu lado delinquente e tomar posse de sua porção justiceira, dispondo de aliados poderosos. A questão é que o outro lado se vale do mesmo expediente.

Nat Love oscila com gosto entre o bom-mocismo e a vilania, prestando em “Vingança e Castigo” uma homenagem, mesmo que velada, a tipos como os incorporados por Clint Eastwood, e reverenciando também o gênero que o consagrou em obras-primas a exemplo das que compõem a trilogia da fortuna, de Sergio Leone (1929-1989), “Por um Punhado de Dólares” (1964), “Por uns Dólares a Mais” (1965), e “Três Homens em Conflito” (1966). O misterioso Homem Anônimo, o Bom do título que fecha a trinca, “The Good, the Bad and the Ugly”, em inglês, seria uma espécie de ancestral direto do personagem de Majors, ambos lançando mão ora de seu lado heroico, ora de sua natureza facinorosa a fim de atingir determinado objetivo. No caso de Love, há ainda o componente racial, ostentado no roteiro de Samuel e Boaz Yakin de maneira consciente, já que o elenco é maciçamente negro. Nat Love é o mártir preto que se levanta contra a barbárie perpetrada contra sua família por um bandido que partilha da cor de sua pele, uma ideia corajosa do diretor, que encampa o risco de fomentar polêmicas vazias acerca de um racismo às avessas, ou pior, de discriminação étnica por parte de um indivíduo negro. A população outrora chamada de cor nos Estados Unidos tem sofrido toda a sorte de preconceito desde muito antes do século 19, quando se passa a trama, momento em que também se deu a aprovação da 13ª Emenda, em 6 de dezembro de 1865, justamente nos estertores da Guerra Civil Americana, quando o Sul escravagista e o Norte, a favor da abolição, se enfrentaram. O trabalho de Samuel não serve, contudo, de retrospecto histórico da efeméride, pormenorizada com todo o rigor intelectual no documentário de Ava DuVernay lançado em 2016, de que igualmente se vale Regina King (que, por sinal, está em “Vingança e Castigo”) em “Uma Noite em Miami” (2020), com a diferença de que King transporta seu filme para os anos 1960, quadra da História em que a discussão sobre os direitos civis de cidadãos pretos na América de fato ganha vulto.

Ainda que combata um inimigo negro como ele, é impossível não se lembrar de “Django Livre” (2012) quando se assiste à performance de Majors. Em “Django Livre”, Quentin Tarantino brinca com os chavões do escravo servil que se torna um vingador e mata barbaramente senhores brancos, desacreditado da justiça e da lei, já que fora alvo das piores ignomínias apenas por ser preto; por outro lado, em seu filme, Samuel parte de um raciocínio óbvio que encerra quanta segregação de fundo racial ainda há nos Estados Unidos dos nossos dias e na sociedade contemporânea em geral: pretos são heróis ou facínoras, bons ou maus, íntegros ou repulsivos, como acontece com qualquer um, de qualquer cor e qualquer sangue, concepção que também irriga “Infiltrado na Klan” (2018), de Spike Lee, cineasta, pensador e… negro, como Samuel, King e DuVernay, ao abordar o preconceito expandindo um pouco mais seu campo de estudo e estabelecendo uma comparação original entre a ojeriza ao afrodescendente e ao judeu, e, por extensão, às minorias como um todo.

Fazendo uma lembrança inteligente a “Crime e Castigo” (1866), do romancista russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), com “Vingança e Castigo”, Jeymes Samuel também alude à noção de resgate da honra por meio do sofrimento, ressaltando-se a visão de mundo fundada no niilismo, tanto em Rodion Românovitch Raskhólnikov, a antítese do mocinho idealizada por Dostoiévski, como em Nat Love, não por acaso as duas narrativas ambientadas nos Oitocentos. Cada era tem a humanidade que merece.


Filme: Vingança e Castigo
Direção: Jeymes Samuel
Ano: 2021
Gênero: Faroeste
Nota: 9/10