Depois de certa idade, pulsa na carne de toda mulher e de todo o homem a certeza de que a vida é de fato um mistério, e circunstâncias inexplicáveis — e não raro sinistras — sempre hão de sobrepujar a jornada de cada um em determinado momento, numa frequência insana que o organismo só tolera porque amalgama essa substância incorpórea que absorvemos do mundo ao caos que tem em si por natureza, vindo sabe Deus de que universo paralelo a este, onde é tudo breu, silêncio e harmonia. A dada altura da vida, o existir parece imerso num caldo untuoso que interdita-nos qualquer movimento, dando a sensação de que a realidade deu lugar a uma condição muito específica, como se um sonho, longo, fadigoso, que drena as energias de quem dorme e tenta, em vão, forjar aquelas imagens a seu talante. Ao notar, finalmente, que está encarcerado a memórias de que deveria livrar-se — malgrado jamais possa —; de que sua história até ali, em maior ou menor grau, há de manifestar alguma influência sobre os rumos que toma agora; de que está a reboque dos desmandos de seu próprio pensamento, no labirinto nebuloso de sua cabeça tão instável, cabe ao homem apenas convencer-se de que viver é mesmo a cornucópia de delírios que lhe parecia desde tenra idade. E fazer doce o naufragar-se nesses mares, como aconselha o poeta italiano Giacomo Leopardi (1798-1837).
Os vaqueiros americanos entram nessa equação como sacerdotes profanos e bárbaros da terra, mestres na alquimia de fazer do talento em lidar com o lado mais primitivo da natureza uma qualidade prezada não só por quem os rodeia, mas pelo povo ianque como um todo, sendo ainda hoje uma peça fundamental no mecanismo gigantesco, complexo e implacável que é a economia dos Estados Unidos. O problema é que, da mesma forma como também acontece em outros segmentos da sociedade na América, seu prestígio e mesmo sua presença foram gradualmente apagados da história, restando apenas a sombra de uma época distante em que foram encarados sob a perspectiva dos grandes desbravadores que continuariam a ser, não obstante sua grandeza e mesmo o espaço físico que um dia ocuparam já fossem uma imagem pálida no horizonte da memória.
Os episódios inescapavelmente belicosos protagonizados por esses homens no transcurso de 250 anos — desde 4 de julho de 1776, quando os Estados Unidos declararam sua independência da metrópole inglesa de maneira unilateral, até hoje, e mais fortemente a partir de 3 de setembro de 1783, quando sua vontade de ser livre os catapultou à vitória e se viram, afinal, livres do domínio de Jorge 3° (1738-1820), rei da Grã-Bretanha e da Irlanda —, harmonizados aos trancos e barrancos à custa de sangue, suor, lágrimas e o aço dos revólveres e espingardas, quase sempre tinham por norte a defesa intransigível da liberdade, conceito que a Carta Magna dos Estados Unidos fez questão de incluir em trechos diversos, inclusive na controversa e algo cínica busca da felicidade, embora o raciocínio, por natureza tão volúvel, perca-se e degenere em justificativa para a intolerância, o ódio e o derramamento de sangue, expediente inadmissível sob qualquer hipótese num território que se pretende regido pela higidez solar da democracia. Senhora das angústias mais profundas do homem, de onde emanam-lhe os sonhos mais doces, a liberdade se nos apresenta sob formas as mais inconcebíveis à razão; contudo só faz sentido se contempla o que existe de mais lindo na condição humana, sua pluralidade.
O que não tem explicação, o que não tem nome, muito do que a razão não alcança, pauta a narrativa dos sete filmes que compõem a lista abaixo, protagonizados por homens que, bem ou mal, encarnam o arquétipo do salvador americano, e, por evidente, tomam forma naquelas terras encravadas em planícies entre montanhas a perder de vista, longe do mar e do céu e banhadas por um dourado que, por si só, já nos recompensa. Em “Joe Kidd”, John Sturges (1910-1992) dá a sua contribuição para que um homem cristalize de vez sua imagem como a alma do faroeste — e do próprio cinema americano pós-moderno — por excelência. Nessa história de amor sua pátria, que não raro descamba em misoginia, xenofobia, ódios implacáveis e hereditários, e sangue, muito sangue — páginas da História que merecem o repúdio de gente civilizada, decerto, mas não podem ser reescritas ou apagadas —, Eastwood põe no chinelo muito antimocinho e quase todos os super-heróis que certos estúdios empurram goela do público abaixo neste tolo chatíssimo e muito mais violento século 21, sem que ninguém ao menos pigarreie. Os outros seis títulos, elencados do mais recente para o lançado há mais tempo, e todos disponíveis ao assinante da Netflix, seguem a mesma toada, inclusive o nacionalíssimo “O Matador”, de Marcelo Galvão, escolhido justamente para, a um só tempo, confirmar a premissa original desses filmes, qual seja, a da fera que só sobrevive num ambiente hostil se assumir-se como tal, e romper com o modelo universal que reza que faroeste é para os gringos, e acabou. Brasileiros também temos o couro grosso.
A relação entre dois tipos que deveriam se repelir e se odiar é o ponto de partida do diretor irlandês Ivan Kavanagh em “Terra Sem Lei” (2019), western sobre as tantas contradições humanas num lugar sem esperança, amaldiçoado pelos mais baixos apetites da matéria. Kavanagh se inspira em ninguém menos que no Sérgio Leone (1929-1989) de “Por Um Punhado de Dólares” (1964), que por sua vez nasceu da adaptação de “Yojimbo” (1961), dirigido por Akira Kurosawa (1910-1998). Aqui, como na mexicana San Miguel idealizada por Leone, o ambiente também resta subitamente pequeno para a lei e os interesses escusos de figuras como o caubói sem nome vivido por Clint Eastwood, talvez o papel em que tenha flertado mais desabridamente com a zona cinzenta que separa mocinhos de vilões. Era nela que Eastwood se movia, da mesma forma que o personagem central do trabalho de Kavanagh, um sujeito que se mostra pouco afeto a sutilezas retóricas como moral, ética ou decoro — até porque o cenário que o rodeia liga-se estritamente a essa realidade de anomia, por mais que não se possa nunca admitir qualquer justificativa para a barbárie.
Em “Sonora”, o roteirista John Sayles toma por ponto de partida “La Ruta de los Caidos” (“a rota dos caídos”, em tradução literal), o romance de Guillermo Munro Palacio, e reconstitui episódios reais de um período de que o México nunca se orgulhou, e por isso mesmo tentou esconder o quanto pôde. Um povo que lida de modo festivo com temas tão controversos como a morte esmerou-se por anos em ocultar a política internacional vigente no Porfiriato, e claro, redobrou esses esforços quando Rubio, num gesto de mesquinha retaliação, atirou na incerteza um nicho de população que deu o sangue no último estágio da retomada econômica após a Guerra Mexicano–Americana (1846-1848), gente como Lee Wong e a mulher, Alma, de Jason Tobin e Giovanna Zacarias, obrigados a abandonar o restaurante que mantinham depois da interdição da Guarda Verde, milícia que fiscalizava por sua própria iniciativa — e com patrocínio do Estado — se as ordens de Rubio eram cumpridas. O deslocamento dos dois, junto com Anita, a filha pequena interpretada por Abbie del Villar Chi, dá azo aos conflitos que Palacio narra em seu livro e que Sayles tem o condão de galvanizar, com a ajuda da fotografia de Serguei Saldívar Tanaka, que potencializa o anil do céu em contraste com a areia dourada do deserto de Sonora.
O propósito do texto de Marcelo Galvão, diretor-roteirista de “O Matador”, nunca foi de o expor as chagas do valente povo sertanejo, e esse talvez seja seu grande mérito. O diretor-roteirista resgata aspectos que, querendo-se ou não, se perdem na bruma corrosiva do tempo, e depois de uma introdução pouco criativa, em que apresenta seus personagens por meio de imagens granuladas num fundo vermelho, começa-se a entender aonde ele quer chegar. Um homem misterioso é surpreendido por duas figuras não menos suspeitas numa clareira improvável em meio àquela estrambólica floresta. A história é naturalmente conduzida para um cordel vivo de versos livres, em que vêm à baila tipos lendários como Lampião e Maria Bonita, logo romanceados pela imaginação errante do público. Na voz aparentemente serena desse cantador de toada nua, sem viola ou acordeão, materializa-se a saga de um matador, e na sua esteira, a subtrama que descreve a ascensão e a queda do garimpo nos cafundós de Pernambuco em 1910, pairando imanente sobre todo o longa.
Quase sempre, a relação entre pais e filhos é, cheia de idas e vindas, altos e baixos, situações em que a parte mais velha desaconselha muitas das atitudes que definem e justificam a existência de quem responde pelo lado mais novo. Esse hiato não só de anos como de intenções entre duas pessoas que se querem bem, mas que optaram por estilos de vida rigorosamente diversos, mesmo antagônicos, vai apontando para desdobramentos muitas vezes dramáticos de questões que passariam por banais aos olhos insensíveis de um grupo social, e é nessa cadência que marcha “O Retorno de John Henry”, um faroeste pleno de revelações e inconfidências, autorizadas ou não, sobre o tempo, conceito eminentemente subjetivo. Observada a medida exata das coisas, Donald e Kiefer Sutherland se valem do que viveram juntos para dar a “O Retorno de John Henry”, o faroeste que o canadense Jon Cassar rodou em 2015, o verniz de facticidade que é a essência mesma da história, e não faria sentido algum reunir um pai e um filho para além da ficção sem querer extrair dessa particularidade algum ponto que fosse contar a favor da trama.
Lawrence Kasdan e o irmão, Mark, dispõem de seus personagens com toda a serenidade — até que o aço comece a estalar. A clássica sequência da travessia a cavalo de um curso d’água caudaloso e com palmo e meio de profundidade esconde muito do que o diretor quer com “Silverado”, que vai se revelando, a despeito das fórmulas mais ou menos surradas, um filme refrescante. Gradativamente, vai avultando um mistério em torno da figura de Paden, o forasteiro encontrado seminu e desfalecido na estrada que conduz ao povoado onde o oeste distante respira. Ele é Leavenworth, não se sabe se no Kansas ou em Washington, estado do noroeste americano, mas em um ou outro caso, andou muito até acabar caindo ali. Kevin Kline capta a aura de segredos obscuros e inadequação de seu personagem, e cenas como a que registra Paden esforçando-se por se ajustar ao novo habitat, tentando comprar uma boa arma, mas levado a se contentar com uma pistola de segunda mão encerram uma comicidade involuntária que nos deixa mais compadecidos que vexados com a situação — para não mencionar a sempiterna paranoia armamentista só americano tranquilo, apenas sugerida aqui, por natural.
Eastwood sentou-se à cadeira de diretor no princípio dos anos 1970, quando estreou “Perversa Paixão” (1971), suspense sobre um radialista perseguido por uma fã. Dois anos mais tarde, o astro dos spaghetti western de Leone se inspirou nos sujeitos insignificantes a que dera vida nos trabalhos do amigo e da experiência resultou “O Estranho sem Nome” (1973), sobre uma figura um tanto marginal que cai do azul (ou emerge das profundezas do inferno) na cidade de Lago, no Arizona, sudoeste dos Estados Unidos e adquire status de verdadeira celebridade ao alvejar de morte três matadores de aluguel. Uma vez que um deles havia sido contratado pelo xerife Sam Shaw, excelente desempenho do divertido Walter Barnes (1918-1998) — um brutamontes saído das fileiras do futebol americano para a tela grande — a fim de dar cabo da gangue composta pelos irmãos Carlin, liderada por Dan, de Dan Vadis (1938-1987), que não tarda a aportar na cidade e trazer o caos, o Estranho, como o protagonista passa a ser chamado — o personagem, curiosamente, ganha um nome perto do final —, assume a tarefa, ajudando o pusilânime Shaw e cavando para si a condição de grande benfeitor de Lago. Como tudo tem um preço, o xerife determina que esse anjo vingador seja atendido em tudo quanto quiser, sem, por óbvio, desembolsar um tostão. Só resta aos comerciantes aquiescer com o achaque e encarar o prejuízo como uma homenagem que o vício presta à virtude, numa crítica contundente de Eastwood à falência do Estado em suas atribuições mais básicas, quase meio século atrás.
É claro que não se pode tomar o que acontecia nos Estados Unidos entre os séculos 18 e 19 à luz do politicamente correto — nem mesmo nas então metrópoles e hoje megalópoles Nova Amsterdã, rebatizada de Nova York, e Fort Dearborn, a não menos glamorosa Chicago de nossos dias —, e essa é a regra de ouro dos westerns. Revirando os segredos entre envergonhados e preciosos desse país fascinante e do povo inspirador e que o fundou e o habita, John Sturges (1910-1992) eleva “Joe Kidd” à categoria de um tratado sociológico bastante sui generis e completamente desabotoado do dia a dia na vila de Sinola, perdida num recanto qualquer nas imediações com o México. Sturges aproveita bem os ventos de liberdade que sopravam naquele distante 1972 para carregar nas tintas do discurso ufanista, empregando para a tarefa a mais americana das celebridades de Hollywood — e uma das mais talentosas. O que se vê em “Joe Kidd” é mais um dos tantos shows de interpretação de um ator no auge da potência física e da maturidade artística, talvez o único em muitos anos a reunir essas duas qualidades fundamentais em seu ofício por mais de meio século.