7 faroestes magníficos na Netflix Dan Power / Universal Pictures

7 faroestes magníficos na Netflix

Depois de certa idade, pulsa na carne de toda mulher e de todo o homem a certeza de que a vida é de fato um mistério, e circunstâncias inexplicáveis — e não raro sinistras — sempre hão de sobrepujar a jornada de cada um em determinado momento, numa frequência insana que o organismo só tolera porque amalgama essa substância incorpórea que absorvemos do mundo ao caos que tem em si por natureza, vindo sabe Deus de que universo paralelo a este, onde é tudo breu, silêncio e harmonia. A dada altura da vida, o existir parece imerso num caldo untuoso que interdita-nos qualquer movimento, dando a sensação de que a realidade deu lugar a uma condição muito específica, como se um sonho, longo, fadigoso, que drena as energias de quem dorme e tenta, em vão, forjar aquelas imagens a seu talante. Ao notar, finalmente, que está encarcerado a memórias de que deveria livrar-se — malgrado jamais possa —; de que sua história até ali, em maior ou menor grau, há de manifestar alguma influência sobre os rumos que toma agora; de que está a reboque dos desmandos de seu próprio pensamento, no labirinto nebuloso de sua cabeça tão instável, cabe ao homem apenas convencer-se de que viver é mesmo a cornucópia de delírios que lhe parecia desde tenra idade. E fazer doce o naufragar-se nesses mares, como aconselha o poeta italiano Giacomo Leopardi (1798-1837).

Os vaqueiros americanos entram nessa equação como sacerdotes profanos e bárbaros da terra, mestres na alquimia de fazer do talento em lidar com o lado mais primitivo da natureza uma qualidade prezada não só por quem os rodeia, mas pelo povo ianque como um todo, sendo ainda hoje uma peça fundamental no mecanismo gigantesco, complexo e implacável que é a economia dos Estados Unidos. O problema é que, da mesma forma como também acontece em outros segmentos da sociedade na América, seu prestígio e mesmo sua presença foram gradualmente apagados da história, restando apenas a sombra de uma época distante em que foram encarados sob a perspectiva dos grandes desbravadores que continuariam a ser, não obstante sua grandeza e mesmo o espaço físico que um dia ocuparam já fossem uma imagem pálida no horizonte da memória.

Os episódios inescapavelmente belicosos protagonizados por esses homens no transcurso de 250 anos — desde 4 de julho de 1776, quando os Estados Unidos declararam sua independência da metrópole inglesa de maneira unilateral, até hoje, e mais fortemente a partir de 3 de setembro de 1783, quando sua vontade de ser livre os catapultou à vitória e se viram, afinal, livres do domínio de Jorge 3° (1738-1820), rei da Grã-Bretanha e da Irlanda —, harmonizados aos trancos e barrancos à custa de sangue, suor, lágrimas e o aço dos revólveres e espingardas, quase sempre tinham por norte a defesa intransigível da liberdade, conceito que a Carta Magna dos Estados Unidos fez questão de incluir em trechos diversos, inclusive na controversa e algo cínica busca da felicidade, embora o raciocínio, por natureza tão volúvel, perca-se e degenere em justificativa para a intolerância, o ódio e o derramamento de sangue, expediente inadmissível sob qualquer hipótese num território que se pretende regido pela higidez solar da democracia. Senhora das angústias mais profundas do homem, de onde emanam-lhe os sonhos mais doces, a liberdade se nos apresenta sob formas as mais inconcebíveis à razão; contudo só faz sentido se contempla o que existe de mais lindo na condição humana, sua pluralidade.

O que não tem explicação, o que não tem nome, muito do que a razão não alcança, pauta a narrativa dos sete filmes que compõem a lista abaixo, protagonizados por homens que, bem ou mal, encarnam o arquétipo do salvador americano, e, por evidente, tomam forma naquelas terras encravadas em planícies entre montanhas a perder de vista, longe do mar e do céu e banhadas por um dourado que, por si só, já nos recompensa. Em “Joe Kidd”, John Sturges (1910-1992) dá a sua contribuição para que um homem cristalize de vez sua imagem como a alma do faroeste — e do próprio cinema americano pós-moderno — por excelência. Nessa história de amor sua pátria, que não raro descamba em misoginia, xenofobia, ódios implacáveis e hereditários, e sangue, muito sangue — páginas da História que merecem o repúdio de gente civilizada, decerto, mas não podem ser reescritas ou apagadas —, Eastwood põe no chinelo muito antimocinho e quase todos os super-heróis que certos estúdios empurram goela do público abaixo neste tolo chatíssimo e muito mais violento século 21, sem que ninguém ao menos pigarreie. Os outros seis títulos, elencados do mais recente para o lançado há mais tempo, e todos disponíveis ao assinante da Netflix, seguem a mesma toada, inclusive o nacionalíssimo “O Matador”, de Marcelo Galvão, escolhido justamente para, a um só tempo, confirmar a premissa original desses filmes, qual seja, a da fera que só sobrevive num ambiente hostil se assumir-se como tal, e romper com o modelo universal que reza que faroeste é para os gringos, e acabou. Brasileiros também temos o couro grosso.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.