Filme na Netflix te levará para dentro dele e fará 128 minutos parecerem o resto de sua vida Giles Keyte / Netflix

Filme na Netflix te levará para dentro dele e fará 128 minutos parecerem o resto de sua vida

Meus prediletos, filmes de guerra como “O Soldado que Não Existiu” trazem em seu bojo algumas metáforas, as edificantes ou aquelas que acenam para o que pode existir de mais repulsivo na natureza do homem — e mesmo nessas, há um ou outro componente que exalta valores como honra, coragem e autossacrifício. Resta, por óbvio, uma ampla margem para deambulações e inferências de caráter político-ideológico em tramas sobre bravos combatentes que abdicam da própria vida em favor da coletividade e do bem público; entretanto, mesmo no caso das desabridamente proselitistas, passam à História apenas as de jaez eminentemente filosófico, ainda que atinjam o condão de dissimular muito bem a vocação panfletária de catequese pseudocívica. Analisando-se a frio, guerras deveriam ser um tema muito mais afeto à ficção científica, que pode acrescentar-lhe zumbis, invasores intergalácticos, criaturas multicelulares que parasitam corpos humanos e por aí afora, fazendo o espetáculo bem mais deslumbrante. Como o homem há de ser mesmo o lobo do homem até que o dia em que a Terra veja-se, enfim, livre da nossa insânia, tenho prazer multiplicado em progressão geométrica quando diante de trabalhos que não se rendem à “beleza” da guerra, tão maravilhosamente inverossímeis que questiona-se logo se saídos da cabeça de roteiristas de saúde psíquica questionável, que por seu turno socorrem-se da vida como ela é, que nunca foi muito chegada a lógica.

Lançado no Reino Unido em 15 de abril de 2022, o filme de John Madden é a descrição minuciosa de um ousado plano de contraespionagem até então obscuro na história da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e básico quanto a pavimentar o caminho da vitória dos Aliados na Europa. Provavelmente, a única infelicidade no trabalho de Madden se refira à escolha do título, de inspiração entre indecorosa, mórbida e escatológica; no mais, trata-se de iguaria para paladares finíssimos, servida por um elenco com o melhor da arte dramática inglesa — e isso por si já é algo superlativo —, e que ainda confere o devido valor à aura factual dos eventos apresentados por meio de uma condução melodramática que, tal como receitas particularmente difíceis, demandam olhar treinado para vingar.

Contando com bem-pensadas invencionices — a exemplo de incluir um Ian Fleming (1908-1964), ainda anônimo, como o burocrata de terceiro escalão que subordinado ao almirante John Godfrey, de Jason Isaacs, chefe da Inteligência Naval Britânica que serviu de inspiração para ninguém menos que M, o mandachuva do MI5, o serviço secreto britânico, na série de romances protagonizados por James Bond —, “O Soldado que Não Existiu” se supera ao conseguir sempre dar um jeito de fazer com que o enredo não se dobre ao tédio pelos motivos errados, quais sejam, a profusão de referências a eventos históricos, principalmente. Neste núcleo, se estabelece a pessoa de Fleming, incorporado por um irretocável Johnny Flynn, o narrador onisciente e onipresente, com direito às sequências pouco originais, mas aqui inegavelmente estimulantes, em que um aspirante a escritor datilografa páginas e páginas da narrativa a que pretende dar corpo. É como se o público houvesse tomado assento na fila do gargarejo de um teatro em cujo palco se desenrola apenas um dos maiores lances da história moderna da humanidade — e o melhor, inédita, guardada para ser conhecida por poucos felizardos.

Essa brincadeira promíscua e delirante entre o real que parece inventado e a História que soa como farsa tem seu único ponto de contato com a fantasia justamente, como não poderia deixar de ser, no personagem de Flynn. O diretor sustenta a hipótese de que teria sido Fleming, um dos autores mais criativos de toros os tempos, a desenvolver o plano, posto na rua em 1943 por Ewen Montagu (1901-1985), interpretado por Colin Firth, brilhante como sempre, e Charles Cholmondeley (1883-1968), de Matthew Macfadyen, oficiais da Inteligência Naval inglesa. Urgia que a Grã-Bretanha achasse uma solução para o avanço de Hitler na Europa, e o primeiro-ministro britânico Winston Churchill (1874-1965), desempenho adequadamente seco de Simon Russell Beale, havia determinado que a Sicília, no sul da Itália, era o flanco ideal para o contra-ataque. Temendo, porém, que os alemães descobrissem o plano, Churchill os instou a também cogitar outras possibilidades. A operação, batizada de Mincemeat (“carne moída”, em tradução livre), teria de fazer uso de documentos intencionalmente plantados, simulando uma invasão pela Grécia. A prova da suposta ocupação seria um cadáver que apareceria no Golfo de Cádiz, na fronteira entre a Espanha e Portugal, posto em que “informações confidenciais” seriam barradas por arapongas nazistas. De tão absurda, essa subtrama obscura do conflito mais intrincado e sangrento da jornada do gênero humano em sua errância pelo planeta já havia virado filme, em 1956, pelas mãos de Ronald Neame (1911-2010). Baseado no livro homônimo de Montagu, “O Homem Que Nunca Existiu” foi, como em 2022, um daqueles momentos difíceis de se explicar na história do cinema.

O roteiro de Michelle Ashford, adaptado do trabalho do historiador Ben Macintyre, expõe a apreensão dos militares envolvidos na tentativa de conter o avanço nazi e o que acontece por trás do que os figurões de Churchill deixam ver. Montagu surge em “O Soldado que Não Existiu” como um homem em busca de novos propósitos na vida. Advogado conhecido no Old Bailey, o Tribunal de Justiça de Londres, o personagem de Firth é homenageado com um jantar, a princípio em agradecimento pelos serviços prestados ao longo de uma carreira bem-sucedida e devotada. Sua aposentadoria já fora sacramentada, meio a contragosto, e a ocasião servirá também para que se despeça de Iris, a esposa judia interpretada por Hattie Morahan, e dos filhos, despachados para os Estados Unidos devido à iminência do ingresso das tropas germânicas na Inglaterra. A vida de Montagu nunca mais será a mesma; com o casamento já estremecido por causa da sobrecarga de trabalho, o afastamento da mulher acaba fortalecendo seu vínculo com Jean Leslie, de Kelly Macdonald, um dos quadros mais eficientes do MI5. Tentando se esquivar do cerco do irmão, Ivor, de Mark Gatiss, Montagu conhece Cholmondeley, com quem apara as últimas arestas da proposta, cuja aprovação nunca acreditaram plenamente. Visionário como raros políticos ainda hoje, Churchill aquiesce; destarte, os oficiais usam o cadáver de um suicida, morto por envenenamento, e lhe atribuem uma nova vida depois de morto. Glyndwr Michael se torna o major William Martin, mensageiro naval, supostamente abatido no Mediterrâneo enquanto conduzia cadetes em formação. Uma reviravolta algum tempo depois, graças à entrada em cena de Salvador Gomez-Beere, o legista zeloso de seu ofício e incorruptível, personagem de Will Keen, quase põe tudo a perder, mas outra guinada faz com que o plano se encaminhe como o esperado, até o desfecho que todos, em algum grau, conhecemos.

Desfila ao longo do filme de Madden uma pletora de outras atuações excelentes, como a da veterana Penelope Wilton no papel da secretária Hester Leggett, uma das mais longevas funcionárias do MI5, provavelmente o mais próximo de uma visão leiga sobre assunto tão específico. Colateralmente, são apresentados alguns dos severos dilemas que pautaram a execução de uma das mais arrojadas ofensivas militares da história, a exemplo da conveniência ou não do envio de cem mil homens para os enfrentamentos na Sicília, coragem que poderia se revelar temerária e se mudar em risco para as tropas aliadas. Aproximando-se o fim da história, o capitão David Ainsworth, de Nicholas Rowe, agente da Inglaterra atuando em território espanhol, mostra que os fins, definitivamente, não justificam os meios, contrariando a máxima do pensador florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527) e se prestando a um lívido contraponto moral numa trama essencialmente pragmática. Pragmática demais.


Filme: O Soldado que Não Existiu
Direção: John Madden
Ano: 2022
Gêneros: Guerra/Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.