O filme mais surpreendente do cinema indiano está na Netflix Divulgação / Netflix

O filme mais surpreendente do cinema indiano está na Netflix

As produções indianas estão longe de ser unanimidade — e Bollywood jamais deu a mínima para essa constatação —, sendo esse justamente o seu pulo do gato. Insuperável na vastidão de tipos humanos que abriga, a Índia, verdadeiro continente dentro da Ásia, se vale do cinema a fim de apresentar ao mundo realidades exóticas, quase absurdas, e “Super Deluxe” confirma a regra. No filme, o diretor Thiagarajan Kumararaja defende pontos de vista no mínimo controversos no que toca a sexo, religião e o esfacelamento moral das instituições, ligando um assunto ao outro mediante personagens que incorporam uma causa, mas ostentam também uma natureza admiravelmente particular.

A primeira sequência, em que edifícios incomodamente próximos uma da outra introduzem cenários em vermelho, impacto que a fotografia de Nirav Shah e P.S. Vinod traduz numa cornucópia de situações em que o nonsense domina tudo, começa a preparar o terreno para o crime que da mesma forma preenche um bocado do roteiro de Kumararaja. Repara-se, guardadas as devidas proporções, uma influência qualquer do Hitchcock de “Janela Indiscreta” (1954). À medida que o enredo se desnovela, contudo, “Super Deluxe” diz sem censura o que pretende, refutando deixar-se capturar pela patrulha do politicamente correto. A primeira evidência inconteste dessa escolha corajosa é o jeito nada singelo com que o diretor-roteirista encaminha o adultério de Vaembu. Como se estimulada por Shiva e punida por Vishnu, a anti-heroína interpretada por Samantha Akkineni se depara com uma das circunstâncias mais desonrosas que alguém pode viver, cujo responsável indireto é Arputhan, o amante, de Mysskin, em entradas quase figurativas, mas espirituosas assim mesmo. Quem também acusa o golpe é Mugil, o marido, de Fahadh Fassil, que toma satisfações com o rival mesmo que este não possa contra-atacar.

O diretor persiste em sua cruzada, encarniçado em certa hipocrisia idiossincrásica de seu país, colocando em cena um grupo de moleques especializados em pequenos delitos cujo grande objetivo é comprar um filme pornográfico. Kumararaja encaminha essa subtrama com uma leveza inusitada — mormente depois que eles descobrem quem é a atriz principal da fita. Esses dois entrechos, menores, servem de bom antepasto ao público, até que o prato principal chegue ao salão. Vijay Sethupathy é o que de fato importa em “Super Deluxe”; sua interpretação, sensível e vigorosa, de Shilpa, que abandonara a família anos antes, quando atendia por Manickam, ajuda a desmistificar uma falsa sensação que grassa entre ocidentais quanto à maior tolerância da sociedade indiana para com essas pessoas.


Filme: Super Deluxe
Direção: Thiagarajan Kumararaja
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.