108 minutos suspense: o filme excêntrico da Netflix que vai te seduzir e paralisar Divulgação / Capelight Pictures

108 minutos suspense: o filme excêntrico da Netflix que vai te seduzir e paralisar

As discrepâncias entre homens e mulheres — especialmente se casados — dão o tom no cinema desde sempre. O venezuelano Sebastian Gutierrez apresenta em “O Quarto Secreto” sua leitura particular da história de um matrimônio em muito semelhante a qualquer outro, mas com seus dramas próprios, que pontuados com a dose exata de mistério e circunstâncias que evocam pânico, compõem um enredo de sofisticação invulgar nas mãos seguras de seu diretor-roteirista. Flagrantemente inspirado por “Rebecca” (1940), do mestre do suspense Alfred Hitchcock (1899-1980) — que, por sua vez se valeu de “Barba Azul”, conto do escritor francês Charles Perrault (1628-1703) publicado em 1697, também incorporado na obra de Georges Méliès, o pioneiro dos pioneiros do cinema —, Gutierrez opta por uma narrativa quase protocolar ao fazer a primeira exposição de seus personagens.

A história abre com Henry, de Ciarán Hinds, um cientista sexagenário que carrega nos braços uma mulher desacordada, aparentemente depois do uso de alguma droga. Logo se nota que a moça, Elizabeth Harvest, vivida por Abbey Lee Kershaw — e cujo nome é usado título original —, está vestida de noiva, e é levada no colo pelo marido para que se cumpra a tradição. Ao se deparar com todo o fausto da nova casa, Elizabeth desperta do transe e começa a tentar absorver os detalhes da nova vida de que está prestes a usufruir, até que a morte a separe de Henry, em tudo correndo como ouro sobre azul. Partilham a cena com Kershaw o enteado de sua personagem, Oliver, de Matthew Beard, milimetricamente posicionado atrás dela, como uma serpente que mesmo cega não erra o bote, e Claire Kellenberg, a governanta, interpretada com um misto de graça e frieza por Carla Gugino, cujo talento permite que seu tipo cresça a fim de amarrar as muitas arestas do introito.

Bilionário devido a suas descobertas em pesquisas sobre o RNA humano, que o habilitaram a vencer o prêmio Nobel de Medicina — outra das chaves do roteiro —, Henry oferece toda a propriedade à nova esposa, exceto um quarto no porão, em que não está autorizada a entrar sob hipótese alguma. Por óbvio, Elizabeth não lhe dá ouvidos e se depara com um cenário aterrador, a única grande (e providencial) novidade no trabalho de Gutierrez, que em tudo o mais é assumidamente similar ao homólogo hitchcockiano, tributo à altura do gênio do cineasta britânico. Seguindo um ritmo pouco linear, em que vaivéns dotados de níveis de tensão ora suportáveis, ora extravagantes tornam-se especialmente saborosos, o abilolado tenente-detetive Logan, papel de Dylan Baker, o amigo policial do protagonista — como em quase todo entrecho do gênero —, surge na história fazendo as indagações de praxe a fim de desvendar os segredos que imagina pairar sobre os moradores da mansão sem nunca concluir coisa alguma, embora saiba, principalmente, pelo que capta das reações de Elizabeth, que por meio de uma névoa obscura eles apenas tentam manter as aparências.

São as escolhas estilísticas que não permitem que o roteiro de “O Quarto Secreto” seja só mais do mesmo. Valendo-se de recursos como a bipartição da tela e o emprego de filtros azul e vermelho em todo o quadro a dada altura da história, além do close dos olhos azuis de Elizabeth, acertos da fotografia de Cale Finot para atender aos fetiches do diretor — do mesmo modo que Hitchcock o tinha por louras e arranha-céus —, Gutierrez evidencia a crispação na atmosfera do palacete, que apesar de construído à luz da arquitetura moderna, tem a mesma aura do castelo medieval de Maxim de Winter, incorporado por Laurence Olivier (1907-1989) na produção de oito décadas atrás, com calabouços e passagens desconhecidas. A edição de Matt Mayer abusa de zooms sutis fazendo com que a câmera resvale por entre os objetos de cena, dando uma impressão de vertigem e sugerindo a natureza sombria, fantasmagórica do ambiente.

A submissão de Elizabeth a um marido tirânico, que dispõe dela como se a esposa fosse um mero autômato construído para realizar suas vontades, só pode ser interrompida caso a personagem tome a atitude corajosa — e radical — por que acaba optando. Da mesma forma que em “Ex-Machina: Instinto Artificial” (2014), dirigido por Alex Garland, Elizabeth abandona o Éden decaído em que fora morar por sua livre vontade saindo por baixo, ao contrário de Ava, a antagonista da história de Garland, mas ainda a tempo de refazer sua vida. E nunca é tarde para tanto.


Filme: O Quarto Secreto
Direção: Sebastian Gutierrez
Ano: 2019
Gêneros: Ficção científica/Thriller
Nota: 8/10