Filme da Netflix te levará para dentro dele e não te deixará sair por 125 minutos Divulgação / Rise Pictures

Filme da Netflix te levará para dentro dele e não te deixará sair por 125 minutos

A despeito de considerações no que toca à dificuldade em se classificar um filme dentro de um único gênero específico, “The Soul” é uma das mais gratas surpresas do cinema. Existem as histórias estimulantes sob o ponto de vista estético, visualmente ricos, cujo conteúdo nem de perto corresponde à boa expectativa gerada pelos olhos; há as que dispõem de uma narrativa bem desenvolvida e que, de quebra, ainda contam com direção e elenco de primeira, mas não muito sugestivos aos olhos; e, por fim, passam à história os raros que, como este trabalho do diretor taiwanês Cheng Wei-hao, sofrem de uma maravilhosa esquizofrenia artística: são muitas coisas, mas têm identidade própria. A ideia original do filme de Cheng talvez ludibrie o espectador justamente por causa da fria naturalidade com que é apresentada. De pronto, se sabe que o promotor de justiça Liang Wen-chao, de um Chang Chen em seu melhor papel, e a esposa, a policial Ah-bao, vivida por Janine Chang Chun-ning, debruçam-se sobre a investigação do homicídio de um megaempresário, dono de uma corporação que controla uma cadeia de empreendimentos milionários em toda a Ásia. O enredo não se alonga muito sobre esse arco dramático num primeiro momento, mas se denota que entre os suspeitos do assassinato estão a mulher e o filho da vítima.

A atmosfera noir decerto é um dos grandes trunfos de “The Soul”, até fisicamente. A fotografia do indiano Kartik Vijay emprega cores frias, com predomínio do azul-marinho e do cinza-chumbo, realçadas pelo efeito de névoa em dadas sequências, o que empresta ao longa a densidade cênica de que precisa, deixando cada vez mais nítida a intenção do diretor quanto a confundir a audiência o mais que puder. A cena do crime que abre a história evidencia o potencial de fomentar o mistério do roteiro, de Cheng, Chen Yen-chi e Jin Pai-lunn, adaptado de “Soul Removal Skills” (“técnicas de remoção da alma”, em tradução literal), romance de ficção científica de Jiang Bo que trata da evolução de tecnologias para o melhoramento do cérebro humano em detrimento do espírito. Transcendendo o evento delituoso em si, o filme se estende sobre rituais de magia negra, possessão demoníaca, metempsicose, o transporte da alma para outro corpo, experimentos de biotecnologia e o irrefreável progresso da engenharia genética, assuntos espinhosos suavizados pela abordagem do sentimento amoroso entre Liang Wen-chao e Ah-bao, vigoroso o bastante para ignorar o câncer metastático que devasta a saúde do personagem de Chang Chen. Todos esses motes vêm coroados por uma sucessão de reviravoltas que pululam na tela e sempre tomam o espectador de assalto.

O fato do longa se passar em 2032, um futuro muito próximo, portanto, ressalta o caráter especulativo da obra de Cheng, que gosta de avançar e retroceder no tempo em seus trabalhos, vide o que já fizera em “Quem Matou Cock Robin” (2017). Aqui, o que se tem é a exposição de uma sociedade que não abre mão de melhorias tecnológicas, ao passo que não se dá conta do quão vai se desumanizando à medida que acata bovinamente as imposições da máquina; aludindo à fragilidade do homem sem glacês retóricos, “The Soul” tem passagens inesquecíveis, como as que retratam a abnegação de Liang Wen-chao em permanecer no caso do magnata assassinado, desfrutando de toda a modernidade do aparato estatal de um país desenvolvido, mas ele mesmo fenecendo devido a uma doença cruel que não lhe dá trégua.

Chang Chen é, indiscutivelmente, a alma do filme. Ao topar o desafio de dar vida a um homem que morre, mas que ao mesmo tempo não se conforma em entregar os pontos assim tão fácil, Chang Chen mostrou do que é capaz e, na sequência, fora escalado para “Duna”, adaptação do romance de ficção científica do escritor americano Frank Herbert (1920-1986), publicado originalmente pela Chilton Books em 1965. Movido para a tela grande sob a ótica de um delirante David Lynch, em 1984, “Duna”, na versão do franco-canadense Denis Villeneuve, um dos diretores mais sofisticados do cinema de todos os tempos, o ator, mesmo num papel muito menor que o promotor Liang Wen-chao, rouba a cena mais uma vez.

Um dos alegados calcanhares de Aquiles na maneira como Cheng leva a narrativa são seus 130 minutos, a justa medida para que se tenha uma história sem atropelos e os tantos jumpscares, que se tornaram verdadeira praga em filmes homólogos precisamente porque usados de modo pouco criterioso. Como sempre sói acontecer em casos que tais, o espectador que se deixa seduzir pela trama, um genuíno deleite, vivencia instantes de refinamento intelectual, quiçá de iluminação mesmo. Com “The Soul”, Cheng Wei-hao reafirma seu talento, auxiliado por profissionais de vulto, como Chang Chen, que proporcionam a seu trabalho a aura de obra-prima de que raras produções são dignas. Encontros como esse resultam em um filme que entranha na alma daqueles que ainda têm espírito.


Filme: The Soul
Direção: Cheng Wei-hao
Ano:  2021
Gêneros: Ficção científica/Mistério
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.