Com alguma frequência, somos desafiados a encontrar motivos para ratificar nossa crença na vida, atropelando o desalento que embrutece e paralisa; trucidando a melancolia, que na dose imprópria, deixa o céu nebuloso da sadia reflexão e avança ao pântano da dúvida imanente e ubíqua, acerca de qualquer um e em qualquer parte; arrasando o que tenta nos demover da fantasia de tempos menos sombrios e gente mais risonha, o ideal mais singelo e mais intricado a que se pode aspirar. Num só movimento, viver torna-se uma sucessão de luzes e sombras que se atraem e se repelem e se equivalem, subidas e descidas bruscas e repentinas como num brinquedo macabro, entradas e saídas de labirintos claustrofóbicos que se estreitam ainda mais conforme tomamos pé de nossas humanas limitações, agudizando a impressão de que no espírito do homem cabem mesmo todos os sonhos do mundo, mas nele encrustam-se igualmente muitas das côdeas que enxovalham o mundo para muito além da vã filosofia deste plano tão rasteiro.
É uma missão inócua tentar compreender o que se passa no lado mais escuro de cada um. Podemos dispor de toda a ajuda que nos oferecer a sorte, mas uma vez que somos nós mesmos os senhores de nossas escolhas, nossos juízes e nossos próprios carrascos, cabe-nos somente a nós a última palavra e só nossas são a culpa ou a fortuna pelo destino que nos aguarda, ainda que as artes, a ciência, o pensamento filosófico ofereçam ao homem ferramentas afiadas quanto a arredondar as quinas mais incômodas e burilar a vida de forma a tolerá-la sem o brilho falso das vãs quimeras com que costumamos nos enganar. Descortina-se um universo paralelo e mágico, santo e diabólico, onde se dão crimes de toda sorte, mocinhos e vilões trocam de roupa e de lugar sem nenhuma cerimônia, arrevesa-se a natureza das emoções e atira-se ao fogo o que deveria ser guardado e ficar para sempre, porto seguro para navegantes cansados dos mares procelosos da descrença de tudo.
Esse tumulto conceitual das coisas que nos elevam e daquelas das quais esforçamo-nos por fugir, mas nos perseguem por toda uma vida, sem descanso, presente em qualquer um, fica ainda mais óbvio no momento iluminado em que deparamos com certas manifestações artísticas. No caso dos filmes, o amálgama de imagens desconcertantes por natureza, uma vez que nunca hão de se projetar com tanta perfeição na vida como ela é, e enredos tão triviais, a ponto de nos ressabiar por tão parecidos com a nossa própria história, é mesmo uma inexplicável alquimia, um feitiço. As desventuras de uma assassina profissional que tenta conciliar a rotina tão idiossincrásica de seu ofício com a educação da filha, pode não ter relação alguma com a jornada excruciante de um trabalhador digno, mas com “Kill Boksoon”, o sul-coreano Byun Sung-hyun prova que a diferença entre sua personagem-título e qualquer um de nós é incomodamente miúda. Junto com outros seis títulos, todos à disposição do assinante da Netflix, “Kill Boksoon” é um dos grandes destaques do catálogo da plataforma para 2023, ano em que chegaram ao mercado e puderam, afinal, encontrar-se com o público. Os filmes estão relacionados por ordem cronológica — apesar de lançados em 2023, “Já Era Hora” (2022), de Alessandro Aronadio e “O Pálido Olho Azul” (2022), de Scott Cooper, começaram a ser produzidos no ano anterior — e alfabética. Procure-se e se ache em algum deles.
O ruído selvagem dos insetos contrasta com o som do rádio de um carro que atravessa a noite. Ao volante, Yalin Sayin, o protagonista de “Encurralados”, viaja com a mulher, Beyza, para Asos, sua cidade natal, onde decidem morar. “Decisão”, na verdade, não é a palavra mais recomendada, como o roteiro de Hakan Günday vai elucidando aos poucos, até que um episódio de tola animosidade entre Yalin, o protagonista interpretado por Kivanç Tatlitug, e Cevdet, vivido por Kerem Arslanoglu, escancara de vez o que acontece na vida desse homem visivelmente transtornado, que volta às origens não por uma qualquer razão afetiva, mas fugindo dos olhares de aversão e revolta das pessoas que enganou ao oferecer um esquema de pirâmide financeira, quando um “investidor” fatura com os ganhos de outro, que faz o mesmo, arrebanhando uma legião de encalacrados.
Na direção de seu primeiro longa, Nathaniel Martello-White apresenta muitos pontos de contato com filmes como “Nós” (2019) ou “Não! Não Olhe!” (2022), mas não arremeda Peele e imprime seu próprio estilo de enxergar uma das maiores preocupações da humanidade nos nossos dias: afastar o cinismo que pontua as discussões sobre justiça social, intolerância e meritocracia voltadas ao contexto da harmonia — e, mais importante, da segregação — das ditas raças, assuntos cada vez mais basilares neste século 21. Num texto cheio de reviravoltas sutis — e absorventes —, o diretor-roteirista abre “Excluídos” com o plano aberto de um roçado visto de cima. A falsa pista de que Martello-White se vale para capturar o interesse do público, graças à impecável fotografia de Adam Scarth, presta-se também a apresentar o cenário de onde vem a protagonista, de quem o espectador começa a desconfiar logo.
Mesmo com esse nome, “Kill Boksoon”, o drama de Byun Sung-hyun sobre uma família tão pequena quanto anticonvencional, tem personalidade. A influência óbvia do Tarantino de “Kill Bill”, a trilogia centrada na descompensação mental de uma mulher humilhada pelo noivo e espinafrada pela vida, deixa-se flagrar sem cerimônia, decerto, mormente na introdução, mas o sul-coreano sabe exatamente o que fazer para escapar da armadilha do remake involuntário. Despretensiosamente, a narrativa esbarra aqui e ali numa alusão um pouco menos sutil ao trabalho do americano, muito mais na forma que no conteúdo; no entanto, a própria história se encarrega de apontar o que a distingue, ajudada pelo desempenho sem par das duas protagonistas, sem dúvida o ponto alto do filme. O diretor-roteirista explora uma das grandes neuras das sociedades contemporâneas sem medo da patrulha do politicamente correto, cujo cerco fica cada vez mais sufocante, em especial num tema que desperta suscetibilidades ora com justiça, ora apenas inconsequentes e hipócritas.
“The Last Kingdom: Seven Kings Must Die” já explica no título do que trata o filme do londrino Edward Bazalgette, ele mesmo um guerreiro de várias frentes. As disputas de poder na Inglaterra — que nem sempre teve esse nome, como o roteiro de Martha Hillier esclarece —, servem de desdobramento a “The Last Kingdom” (2015-2020), distribuída pela Netfix e inspirada em “Crônicas Saxônicas” (2015-2020), compilação de novelas medievais da lavra de Bernard Cornwell. Hillier conserva-se bastante fiel à obra do escritor, mas é o molho fílmico, pleno das imagens em frenesi da edição de Adam Green, que faz da conquista e, por óbvio, da frágil manutenção do poder nos rudimentos da Grã-Bretanha, uma história digna de ser contada.
“Meu Nome é Chihiro” dá a impressão de ser uma espécie de tributo à heroína de Hayao Miyazaki, e, de certo modo, a inferência procede. Assim como a personagem-título de “A Viagem de Chihiro” (2001), Oscar de Melhor Filme de Animação, a protagonista do longa de Rikiya Imaizumi também é dona de seu próprio nariz e corajosa um tanto além da medida e demonstra preferir manter-se em constante deslocamento a se relegar à condição de mera espectadora da vida, sua e dos outros, contemplando tudo em perturbador silêncio até que não suporte mais e exploda em ódio e autodestruição. Apesar de todos esses pontos de contato, existem aspectos que distinguem-nas e, claro, é uma saborosa provocação que Imaizumi faça de sua Chihiro uma ex-prostituta sem conta alguma a acertar com o passado.
O tempo puxa arrependimentos, que trazem lembranças, que por sua vez requenta mágoas, e as mágoas, essas ninguém sabe direito o que podem fazer com o destino de uma pessoa. “Já Era Hora” castiga os costumes brincando com uma das coisas mais fundamentais e mais negligenciadas da vida, nossa equivocada e frágil ideia do que significa o existir, nossa estúpida arrogância quanto a achar que o sobe e desce dos ponteiros, a passagem dos dias, a marcha silenciosa e constante dos anos, deveria esperar por nós, como se fôssemos nós os capitães do navio. O protagonista do filme do italiano Alessandro Aronadio experimenta tempos caóticos — malgrado o tempo por si só não seja caótico, fluido ou inconstante, apenas o tempo; o tempo apenas existe, o tempo apenas é.
“O Pálido Olho Azul” sobrepuja o básico da narrativa de suspense. Socorrendo-se de elementos técnicos, Scott Cooper tem o condão de ressuscitar o interesse por um dos mais ousados escritores de todos os tempos, ao passo que escapa ao óbvio escolhendo fixar-se nos detalhes que seduzem sua audiência, seja pelo olhar, seja pelo que é dito. A impecável fotografia de Masanobu Takayanagi dirime qualquer dúvida quanto as pretensões de Cooper, transportando o espectador para o cenário, tão aterrador quanto lindo, do Vale do Hudson, nas imediações da Nova York de 1830 durante um inverno rigoroso, que se encarrega de tornar o clima especialmente lúgubre. Adaptado de um romance de Louis Bayard, o roteiro do diretor se aproveita do frio para fazer com que seus personagens circulem pelos lugares cheios dessa beleza diabólica que choca, mas também mesmeriza.