Atividades que congregam esforço físico e cabeça em harmonia tem o poder de causar no homem prazeres que confundem os sentidos. Sempre há o risco, entretanto, dessa química desandar, justamente por mexer com emoções frágeis — mesmo que apontem na direção contrária —, a despeito da ânsia do corpo por uma trégua. O italiano Francesco Lettieri enfronha-se nesse lado ominoso do futebol e seu “Ultras” chega a parecer um estudo antropológico acerca das propriedades destrutivas desse esporte, que, claro, é tomado não como um exercício altamente eficaz para se manter a forma ao aliar práticas aeróbicas e momentos de explosão em que a resistência do organismo vai ao limite, mas sob a forma de um negócio perverso, que alija de seu eixo boa parte daqueles que o sustentam. Isso para não mencionar uma excrescência que foi se cristalizando nos estádios mundo afora, praga que, no fundo do cinismo de cartolas, jogadores, de um quinhão da polícia e das emissoras de televisão, joga água no moinho dos lucros indecentes que cada partida gera.
Há muito que as torcidas organizadas deixaram de ser apenas um ajuntamento de marmanjos com uma paixão em comum. Hoje, essas agremiações são, na prática, o pesadelo de quem tem o futebol como o que ele de fato é, um dos jeitos mais saudáveis de conectar-se com sua natureza mais primeva, o que nada tem a ver com selvageria. Uma figura popular incorpora-se aos ultras, os fanáticos torcedores do Napoli, que creem que seu time é maior que a própria seleção — numa das primeiras cenas do roteiro de Lettieri e Pepe Fiore, ouve-se nitidamente que se eles se autodenominam os verdadeiros azzuri, como são chamados os integrantes da Squadra Azzura, o apelido da seleção da Itália. Na verdade, a megalomania criminosa de tipos como Sandro, também conhecido por Sà, ou Moicano, ou simplesmente Moica (é impressionante a quantidade de apelidos que eles têm), é o néctar que sacia os vândalos que o têm como um pai, e isso começa a fazer sentido depois que o diretor se aprofunda na curta visão de mundo do personagem de Aniello Arena, que parece trocar de pele ao sabor de suas conveniências. Diante dos ultras, Sandro garante que eles são superiores ao próprio Deus, mesmo se em menor número e tomando uma lavada do adversário; em casa, o “mito” é dominado por uma solidão que o estrangula, mal-estar que divide com o público, e só tem algum remédio quando na companhia de Angelo, ou Angiolè, o aspirante a facínora de Ciro Nacca, em quem encontra perturbadoras semelhanças com o que era três décadas atrás, momento em que começou sua duvidosa militância entre os ultras.
Lettieri cava provocações estimulantes ao equiparar Nápoles e Bérgamo, o sul distante, caipira, atrasado e o norte, cosmopolita, desenvolvido, moderno — ao menos no que concerne ao planeta bola. Existem laivos evidentes de grandes produções do cinema no método, assumido ou não, que o diretor põe em marcha em “Ultras”, a começar pela relação dialética de Sandro e Angelo, aquele em busca de um futuro que pode já ter passado; este, deitando a perder a vida por uma paixão corrompida. Tal como em “O Poderoso Chefão” (1972), de Francis Ford Coppola, esses Vito e Michael Corleone dos campos, jogam com a morte querendo acertar na vida. Naturalmente, o placar não sai do zero a zero.
Filme: Ultras
Direção: Francesco Lettieri
Ano: 2020
Gênero: Drama
Nota: 8/10