Suspense na Netflix é um dos melhores filmes chilenos de todos os tempos e você não assistiu

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Embora o Brasil pareça uma prótese no corpo da América do Sul, todos compartilhamos de um mesmo organismo vivo, que funciona em conjunto, adoece e se regenera em codependência. Nos sentimos como penetras em uma festa dentro de nossa própria casa. Somos como o irmão rebelde, a ovelha negra, que se sente um estranho no ninho.

Embora nós nos esforcemos tanto para nos dissociar da América do Sul e ela de nós, é inegável que nossa história está intrinsicamente interligada, unida, conectada. Não é à toa que os líderes globais tenham olhos tão atentos ao cenário político daqui. Nem foi em vão que os Estados Unidos tenham apoiado, e em certo ponto até arquitetado, de forma tão contundente, uma ditatura militar no Brasil durante o governo de João Goulart, que apoiava Cuba de Fidel Castro. A América do Sul segue os passos do Brasil.

Para que esses passos rumassem de maneira agradável para os Estados Unidos e seu imperialismo, era mesmo necessário cortar o mal pela raiz. O “fantasma do comunismo” precisava ser exorcizado o mais rápido possível e violentamente, se preciso. Aqui, aconteceu em 1964. Na Argentina, em 1966. No Uruguai, em 1973, assim como no Chile.

“1976” é um filme da também atriz Manuela Martelli. Até agora, é seu primeiro e único longa-metragem. Apesar de ser novata na função, o trabalho foi exemplarmente executado. A produção faz parte de um movimento do cinema chileno que busca dar memória à ditatura no país, para que não seja esquecida, amenizada e nem trazida de volta pela nova onda de conservadorismo que tem passado pelo mundo nos últimos anos.

Um charmoso noir que coloca Aline Küppenheim no papel de Carmen, uma mulher elegante e estilosa de classe média alta, que se vê diante de um conflito moral. Esposa e mãe de médicos, ela viaja até a casa de praia da família para reformar o imóvel. Na pequena cidade costeira, ela conhece o padre Sanchéz (Hugo Medina), que sabe de suas habilidades como cuidadora na Cruz Vermelha.

Na juventude, Carmen sonhava em ser médica. No entanto, na época, não era bem-visto uma mulher fazer faculdade ou atuar na profissão. Como consolo, ela pôde trabalhar fazendo caridade na Cruz Vermelha, o que lhe deu uma boa experiência com curativos e medicamentos. Padre Sanchéz pede a ajuda dela para cuidar de Elías (Nicolás Sepulveda), um jovem criminoso que teria sido baleado na perna enquanto furtava comida. “Ele é como um Jesus faminto”, o padre tenta convencê-la de ajudar um criminoso. Carmen aceita.

Sob uma atmosfera de perigo, ela cuida do rapaz, que parece indefeso e desamparado como uma criança. Ao longo dos dias, ela se aproxima de Elías e descobre os reais motivos de seu ferimento. O jovem é ainda pior que um criminoso, é um comunista que integra um grupo de resistência contra a ditadura de Pinochet. Embora Carmen também seja contra o regime, ela jamais se imaginou ajudando seus opositores de qualquer forma que fosse.

Seu trabalho na igreja é sigiloso até mesmo para o marido, Miguel (Alejandro Goic). Durante uma passagem dele pela cidade, Carmen passeia de iate com um casal de amigos reacionários e os ouve chamar os comunistas de traidores da pátria. Vivendo sob uma sombra ameaçadora de perigo, Carmen se sente como uma agente dupla: a avó que organiza o aniversário de sete anos do neto na casa de praia e a mulher misteriosa e sem nome que ajuda secretamente guerrilheiros esquerdistas contra o governo militar.

O drama político é embalado pela trilha sonora de Mariá Portugal, que é baixa, contida e misteriosa, trazendo uma sensação de ansiedade para o espectador. É como se houvesse um medo não pronunciado. Manchas de tinta vermelha em algumas cenas fazem alegoria ao sangue das vítimas do regime. A fotografia dourada de Soledad Rodríguez traz uma falsa sensação de férias, verão, tranquilidade e paz. É como o Chile sob o governo de Pinochet parecia para a elite reacionária em que Carmen se camufla.

Também é importante destacar o primoroso trabalho de Gabriela Varela e Pilar Calderon nos figurinos, especialmente os de Carmen. Essa é uma das marcas da personagem, que está sempre em trajes muito estilosos e sofisticados. A camada externa dela é um disfarce em sua sociedade privilegiada. Há uma Carmen que se esconde nas camadas inferiores. Não apenas a que ajuda feridos e injustiçados, mas a que também sofre de transtornos mentais por não se sentir adequada para os papeis que lhe foram impostos: o de mãe, dona de casa, avó, madame. Algo dentro dela quer escapar dessas amarras sociais e ser dona de seu próprio destino, construir um mundo melhor, ter um papel mais ativo fora de sua redoma de cristal.

Há algo neste filme que também é particularmente interessante. É como ele se parece com um recorte da vida de Carmen, não como uma biografia completa. É como um acontecimento passageiro, que traz abalos momentâneos, depois passa. Isso é tão interessante e significativo. A elite pode até experimentar alguns transtornos, mas sua posição jamais é perturbada.


Filme: 1976
Direção: Manuela Martelli
Ano: 2022
Gênero: Drama/Suspense
Nota: 10/10

Fer Kalaoun

Fer Kalaoun é editora na Revista Bula e repórter especializada em jornalismo cultural, audiovisual e político desde 2014. Estudante de História no Instituto Federal de Goiás (IFG), traz uma perspectiva crítica e contextualizada aos seus textos. Já passou por grandes veículos de comunicação de Goiás, incluindo Rádio CBN, Jornal O Popular, Jornal Opção e Rádio Sagres, onde apresentou o quadro Cinemateca Sagres.