Um dos filmes mais brutais, inteligentes e devastadores do cinema, está na Netflix e você não assistiu Divulgação / Nuvision

Um dos filmes mais brutais, inteligentes e devastadores do cinema, está na Netflix e você não assistiu

“Amores Brutos” é um filme violentamente sutil. Ninguém fica incólume diante da sucessão de imagens que Alejandro González Iñárritu junta ao longo de mais de duas horas e meia, uma mais acintosa que a outra, e já nos primeiros minutos, tem-se a acertada noção de que o incômodo que se sente com o que o diretor leva à tela irá aumentar de modo cartesiano, como se quanto mais o público conhecesse aquelas pessoas, mais tomado ficasse da miséria de suas vidas, muito mais contundente que apenas a luta pela sobrevivência, exasperante e de resultados quase sempre desapontadores. Iñárritu é um cineasta dado a engolfar-se no maldito de seus personagens e no absurdo das situações que propõe e extrair daqueles e, principalmente, das segundas perspectivas novas acerca do grande horror que paira sobre a vida. E “Amores Brutos” decerto foi uma das vezes em que o fez de maneira mais crua.

Determinismos são perigosos, mas não raro há nas produções mexicanas um travo de agonias reais ou imaginadas absorvido com esforço pelo espectador na primeira dose, mas que vira um fino licor do qual ninguém mais abre mão depois de incorporar aquele corpo estranho. A obsessão do texto de Guillermo Arriaga por cães, encampada por Iñárritu do jeito menos adorável, porém mais coerente, é um dos primeiros sinais de que não houve da parte de nenhum deles a intenção de poupar a audiência — quanto aos cães, as produtoras Altavista e Z Films garantem que os animais não sofreram maus tratos, o que é, sejamos francos, muito difícil de acreditar; dou-lhes, contudo, o benefício da dúvida, mas se porventura algum dia vir à baila uma evidência qualquer do contrário, serei o primeiro a soltar os cachorros, com a licença do trocadilho. Nem todo mundo suporta ir adiante exatamente por causa da violência desmedida contra os bichos, metáfora cruenta que põe a nu a realidade de gente obrigada a asseverar sua subsistência como pode, e pode pouco. Assim mesmo, aflora cá e acolá uma ou outra promessa de beleza, a exemplo de quando a edição de Luis Carballar, Fernando Pérez Unda e do próprio diretor concentra-se em fragmentos em que os cães que sobrevivem a uma rinha voltam para casa no colo de seus donos bestiais e não parecem nutrir contra eles nenhum rancor oculto. Esse amor de cachorro, como se lê na tradução ao pé da letra do título original, essa fidelidade canina que o instinto mantém a toda prova no transcurso de doze mil anos margeia os três capítulos de “Amores Brutos”, dispostos sem tanto método, mas com uma preocupação nítida de não permitir que ninguém se desinteresse.

O primeiro, encabeçado por Gael García Bernal, presta-se a abrir caminho para o mal-estar que se impõe nos dois seguintes, mormente no último. Por circunstâncias que o roteiro de Arriaga não explicita de imediato, Octavio, a figura torta a que Bernal dá vida, começa a levar Cofi, o rottweiler para os encontros clandestinos em que dois cachorros brigam até que um morra e o outro reste despedaçado. Octavio precisa do dinheiro para ajudar em casa, mas necessita dele muito mais para dar um fim num intolerável desequilíbrio entre sua vontade e o que a vida na casa em que mora com a mãe, interpretada por Adriana Barraza; Ramiro, o irmão mais velho, personagem Marco Perez; e a cunhada, Susana, de Vanessa Bauche. Esse núcleo introdutório, desesperançado, ínvio, caótico, dá azo à terceira narrativa — a segunda mais parece só um expediente quase estúpido de amarrar um e outro tomo —, na qual Chivo, trabalho irretocável de Emilio Echevarria, assume o posto de anti-herói, mocinho e vilão, ancorando uma rinha de cães engravatados que deixa muito psicopata de Hollywood no chinelo.

A forte influência do espanhol Luis Buñuel (1900-1983), cuja carreira deslanchou mesmo no México, se atesta se se compara o filme de Iñárritu com, por exemplo, “Tristana, Uma Paixão Mórbida” (1970) — para não voltar à abordagem psicanalítica e sublinhar a obsessão por cães, que Buñuel compartilha com o colega contemporâneo. Entretanto, “Amores Brutos” vence por si só, faz-se notar sem ajuda, como o mascote esperto de uma família numerosa; pensando bem, e sem ferir suscetibilidades e preferências, essa história está mais para um felino igualmente sedutor, não obstante traiçoeiro, que passa despercebido, mas exige atenção nas horas menos convenientes.


Filme: Amores Brutos
Direção: Alejandro González Iñárritu
Ano: 2000
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.