O filme mais caro e um dos mais assistidos da história da Netflix (e, talvez, você não tenha visto) Paul Abell / Netflix

O filme mais caro e um dos mais assistidos da história da Netflix (e, talvez, você não tenha visto)

Se o zênite da carreira cinematográfica de um ator é viver um super-herói, Ryan Gosling definitivamente não tem do que reclamar. Um dos mais talentosos atores de sua geração, Gosling, astro em produções tão díspares e fascinantes “La La Land — Cantando Estações” (2016), dirigido por Damien Chazelle, e “Drive” (2011), do dinamarquês Nicolas Winding Refn, dispõe de carta branca para pegar a audiência num projeto tão inovador quanto oportuno. Não se pode afirmar com razoável margem de acerto se o expediente de lançar mão de intérpretes do gabarito de Gosling, capazes de encarnar papéis os mais versáteis, será uma espécie de protocolo a fim de avalizar essas produções, mas decerto é possível se especular que o simples gesto de fazê-lo sinaliza intenções nada modestas de plataformas de streaming quanto a avançar muitas casas rumo à feitura de conteúdos verdadeiramente relevantes, quiçá até elitistas, mesmo que preservem a essência popularesca. Esse difícil equilíbrio entre o sofisticado e o banal, querendo ser o primeiro, mas gozando do alcance do segundo, parece ser a pedra filosofal da indústria cinematográfica dos nossos dias, cujo feitiço é cada vez mais bem absorvido por essas megacorporações.

 “Agente Oculto” (2022), dirigido pelos irmãos Anthony e Joe Russo, custou à gigante do mercado de filmes sob demanda a enormidade de 200 milhões de dólares, o orçamento mais caro para um longa feito pela empresa. Inspirado no romance homônimo de Mark Greaney, estreia do autor no mercado literário em 2009, o blockbuster dos responsáveis por “Vingadores: Ultimato” (2019) e pontapé inicial da Netflix rumo a uma megafranquia própria se apoia muito mais no elenco que propriamente na história para cavar esse espaço, e nisso deu um tiro certo.

Atendendo pela alcunha de Sierra Six, “já que 007 não estava disponível”, Gosling dá vida ao espião cuja pena é abreviada por Donald Fitzroy, o alto burocrata interpretado por Billy Bob Thornton. Metendo os pés pelas mãos em alguma medida, Six já é solicitado para outro desafio por Denny Carmichael, seu novo superior, personagem de Regé-Jean Page: dar cabo de Lloyd Hansen, o ex-mercenário da CIA, hoje no setor privado, que anda se valendo de seus conhecimentos sobre a agência para vender informações sigilosas (mesmo que apenas faça supor que as tenha). A entrada em cena de Chris Evans se dá no momento exato em que o roteiro de Christopher Markus, Joe Russo e Stephen McFeely começava a correr o risco de derivar para um dos episódios de “Missão: Impossível” sem o pathos do Ethan Hunt de Tom Cruise. O cinismo de Hansen, temperado com lances inesperados como comentários homoeróticos sobre seu novo rival — o texto da tríade de roteiristas segue nesse diapasão até o encerramento, insinuando um possível romance dos dois num passado remoto —, baliza a história com trechos levemente cômicos, até que os confrontos entre os dois escalam um nível mais elevado, e Six terá de descobrir sozinho se seu desafeto tem mesmo poder o bastante para estremecer as relações dos Estados Unidos com outros países, uma vez que Carmichael não ficou vivo tempo suficiente para auxiliá-lo na tarefa. Igualmente cinzenta é Dani Miranda, a personagem de Ana de Armas, lamentavelmente a reboque do desempenho de Gosling.

A interação de Six com Claire, a filha de Fitzroy sequestrada por Hansen, é mais um dos artifícios usados pelos diretores no intuito de catapultar “Agente Oculto” para a fruição de outra faixa de público. A personagem de Julia Butters não demora a se afeiçoar por aquela figura um tanto casmurra que, calejada, resiste muito até se derreter de vez. Se havia alguma dúvida quanto a algum traço de bom-mocismo do protagonista, a maneira como passa a conduzir a relação com a garota assevera que sua possível afinidade com o vilão de Evans ficou mesmo num tempo morto. Um super-herói de verdade, encarnado por um homem real.


Filme: Agente Oculto
Direção: Anthony e Joe Russo
Ano: 2022
Gêneros: Ação/Suspense
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.