O cinema da América Latina foi se tornando notório numa modalidade muito curiosa de filmes: os filmes sobre ditaduras, dentre os quais “1976” pode ser incluído — claro que, para tanto, o subcontinente precisou, antes de mais nada, especializar-se em ditaduras, e num e no outro quesito saiu-se galhardamente. A despeito de todo esse talento, de tamanha criatividade, da urgência de investigar um pouco mais a fundo o que de verdade existe na história do totalitarismo que atravessou o caminho da maior parte de nações irmanadas ou pelo idioma ou pela configuração sociopolítica ao longo das décadas de 1960 e 1980, do México à Argentina, passando por Bolívia, Peru, Nicarágua, Equador e Brasil — e de conferir uma aura de romance brega ao que foi irremediavelmente varrido pela bruma do tempo e das versões múltiplas, uma cancelando a outra —, pôde-se chegar a empolgantes resultados, que por seu turno levam a conclusões animadoras, mas que não deixam de causar espécie.
Por meio de um recorte estritamente pessoal, íntimo, o filme de Manuela Martelli dedica-se a revolver um pouco mais do que ainda sobra de mistério sobre a ditadura de Augusto Pinochet Ugarte (1915-2006) no Chile entre 11 de setembro de 1973, quando derrubou Salvador Allende (1908-1973), o presidente eleito pela vontade popular, num golpe de Estado, e 11 de março de 1990, momento em que o povo se faz respeitar novamente e a massa exaurida, sem emprego, famélica, sem perspectivas de nada consegue, com um referendo, manifestar seu repúdio e ter de volta sua soberania sobre o poder. Martelli, em seu quarto filme como diretora, lança mão de aspectos oblíquos, quase nebulosos, a fim de mostrar o que significa uma interferência tão brutal na vida privada de gente comum, não obstante endinheirada. E a forma que escolhe para isso, de tão sutil, dói.
À primeira apreciação, o roteiro, da diretora e Alejandra Moffat, não têm nada de mais. Antes da força do texto, como sói acontecer nos bons filmes, impõe-se o vigor airoso das imagens, e com muita parcimônia, um e outra vão se encontrando, se afinando, tornando-se uma substância original, nova, que não sai mais de quadro. Carmen, a elegante dona de casa vivida por Aline Küppenheim, parece não ter muito mais o que fazer que não seja entregar-se a dúvidas quanto à nova cor das paredes da sala, preparar bolos para os aniversários dos netos ou receber os amigos de Miguel, o marido médico e próspero, de Alejandro Goic. Enquanto a ditadura recrudesce e Pinochet vai cristalizando seu domínio sobre o Chile, pesando cada vez a mão sobre o povo e, por natural, fechando o cerco sobre estudantes, professores, jornalistas e todo aquele que ousa desafiá-lo, Carmen parece mesmo entretida em seus afazeres domésticos, sem a exata dimensão do que se passa na algaravia das ruas. Küppenheim empresta a sua personagem a agonia silenciosa, de fera presa numa jaula de ouro, ansiando por algum propósito de vida; suas preces se fazem ouvir quando o padre Sánchez, de Hugo Medina, a encarrega de tratar de Elías, um militante pró-democracia, baleado pelas tropas de Pinochet, que ninguém sabe se morre ou vive pela cena em que Carmen vai ao seu encontro.
A participação de Nicolás Sepúlveda, embora sempre milimetricamente calculada, rende bons momentos para o trabalho da protagonista e ao filme como um todo. A aparição de um garoto socialista, tomado pela gana de viver ainda que dançando com a morte, dá novo fôlego à vida da pobre burguesa — e até se torce pelo improvável romance dos dois. Martelli trabalha essas variáveis até o desfecho, surpreendente pelo naturalismo, e entre uma sequência e outra, Küppenheim chega, enfim, ao coração de Carmen, também ela uma revolucionária, a seu modo, e uma infeliz, como só ela mesma sabe ser.
Filme: 1976
Direção: Manuela Martelli
Ano: 2023
Gêneros: Drama
Nota: 9/10