Escondido nas prateleiras da Netflix: um dos filmes mais encantadores do cinema brasileiro e dos livros Divulgação / Paris Filmes

Escondido nas prateleiras da Netflix: um dos filmes mais encantadores do cinema brasileiro e dos livros

Jorge Amado é um patrimônio brasileiro na literatura e soube expressar em sua escrita uma brasilidade popular e carnavalesca como ninguém. De “Tieta do Agreste” a “Gabriela, Cravo e Canela”, de “Capitães de Areia” até “Dona Flor e Seus Dois Marido”, a obra do autor pode ser confundida com vulgaridade pelos mais conservadores, mas o literato traduzido para mais de 80 idiomas não escrevia apenas para causar. Ele sabia bem como retratar a identidade brasileira, aquela malandra e sensual pela qual somos estereotipados no exterior, mas que ousamos considerar ofensiva.

Achei um pecado fazer um remake de “Dona Flor e Seus Dois Maridos” de Bruno Barreto, lançado em 1976 e estrelando Sônia Braga, José Wilker e Mauro Mendonça. Para mim aquela verdadeira obra-prima é tão intocável que deveria ter sido a única e eterna. Mas não adianta chorar o leite derramado. Sempre vai ter alguém para querer dar cara nova para o que já é considerado velho. Aquela primeira versão cinematográfica do produto literário de Amado levou Braga a ser indicada ao Bafta de melhor atriz. Também inspirou a refilmagem hollywoodiana “Meu Adorável Fantasma”, com Sally Field, James Caan e Jeff Bridges.

Mas sabe que depois de ver, eu até gostei da nova adaptação de Pedro Vasconcelos? É difícil comparar a direção com a de Bruno Campos, à época com apenas 19 anos e já tão preparado para fazer cinema. Também é duro equiparar Marcelo Faria com José Wilker. Exigência demais. Wilker foi e será inigualável.

Para os mais jovens, que não conhecem ainda o enredo, o filme já começa com a morte de Vadinho (Marcelo Faria), um homem que morreu pelos excessos, enquanto pulava carnaval. Um sujeito debochado, apaixonado pela vida, apegado às bebidas alcoólicas, à farra e ao sexo, ele causa muitos problemas para sua esposa, Flor (Juliana Paes), que apesar de sofrer com o comportamento errático do marido, não resiste ao fogo da paixão que arde entre eles.

Com a morte de Vadinho, Flor é influenciada a seguir com sua vida e a dar atenção para o médico da cidade, o doutor Teodoro (Leandro Hassum), que está caidinho por ela. Logo eles se casam e Flor se vê em uma relação completamente diferente da anterior. Teodoro é religioso, sério, retrógrado. Não tem a mesma fogosidade e carisma de Vadinho. No entanto, ele oferece a estabilidade, organização e cuidado que o falecido jamais deu a ela.

Ou seja, cada um tem suas vantagens. Se Vadinho era pura paixão, Teodoro é a segurança e cuidado. Sentindo a falta do ex, Flor clama por um reencontro com o falecido. O espírito do primeiro marido, então, retorna para assombrar a mulher. Na verdade, para tentá-la, já que Flor sente falta do sexo com Vadinho. Então, ela se vê dividida entre os dois amores.

“Dona Flor e seus Dois Maridos” tem aquele humor regionalista incandescente e único, culturalmente rico e que expressa muito bem a realidade da camada mais popular da nossa sociedade. Ele desafia nesta e em outras obras o machismo e o patriarcado, colocando no centro de sua trama mulheres livres, cheias de personalidade, abrasivas e sensuais. Traz personagens realistas, que se parecem com pessoas a quem conhecemos, que trocam diálogos ao mesmo tempo que poéticos, triviais.

Conhecer a obra de Jorge Amado, mesmo que através de uma adaptação cinematográfica, seja a de Barreto ou a de Vasconcelos, é conhecer um pouco mais do Brasil, se aproximar um pouco mais das nossas raízes e reconhecer que é raro e belo ter nascido por aqui. Um filme para se orgulhar da brasilidade, “Dona Flor e Seus Dois Maridos” é um tesourinho guardado nas prateleiras da Netflix.


Filme: Dona Flor e seus Dois Maridos
Direção: Pedro Vasconcelos
Ano: 2017
Gênero: Comédia/Romance
Nota: 8/10