Sequência de um dos filmes mais assistidos da história da Netflix acabam de estrear Scott Yamano / Netflix

Sequência de um dos filmes mais assistidos da história da Netflix acabam de estrear

Construções semânticas, com assuntos desconexos entre si a uma análise mais irrefletida, não raro servem de fundamento a histórias surpreendentes mesmo na forma como manipulam circunstâncias verossímeis até que delas não reste nada mais que o absurdo. “Mistério em Paris”, continuação de “Mistério no Mediterrâneo” (2019), de Kyle Newacheck, segue investindo no especioso contrassenso entre um casal de meia-idade, ainda vigoroso, todavia certo de que os melhores dias de suas vidas fazem parte de um passado que não lhes cabe mais, até que Jeremy Garelick, o diretor, vai tirando da cartola situações que ratificam a insânia que volta a ser o cotidiano dos dois, que no fundo não haviam se resignado com uma possível interrupção em suas atividades, compulsória e precoce.

Na abertura, uma retrospectiva com os percalços dos Spitz ao longo do primeiro filme, quando começam a se dar conta de que o trabalho como investigadores particulares não era assim tão glamoroso quanto pensavam. Apesar dessas imposições meio austeras da realidade, eles não desistem e em “Mistério em Paris” surgem ainda mais desabusados, resolvidos a dobrar a aposta e tomar a frente nas investigações sobre crimes que dão um nó na imaginação dos profissionais mais tarimbados. O roteiro de James Vanderbilt, entretanto, dá uma pausa na narrativa de suspense, que predomina em “Mistério no Mediterrâneo”, e deslinda o aspecto cômico que o longa de Garelick pretende encampar, cada vez mais ubíquo, com dois protagonistas entrosados se alternando no posto de anti-heroína e anti-herói.

Jennifer Aniston e Adam Sandler demoram a efetivamente aparecer e justificar sua presença no filme, mas uma vez que o diretor deixa claro o que pretende, todas as vezes que os dois surgem na tela, o espetáculo está garantido. Os diálogos em que tanto Aniston quanto Sandler desfiam seus bifes sobre as invencíveis dificuldades do casamento, com reflexões ora ligeiras, ora quase sofisticadas acerca dos temas menos óbvios e mais infames que afloram em dezesseis anos de convívio — inclusive os que tocam a fisiologia de uma das partes —, são apenas detalhe numa trama que prima pela incorreção. Nick e Audrey almejam recobrar algo da visibilidade que terminaram por arruinar em empreitadas muito mais complexas que suas pretensas aptidões. O convite para o casamento de Vikram, o marajá indiano de Adeel Akhtar, e Claudette, a ex-vendedora de butique interpretada por Mélanie Laurent, torna-se, literalmente, a chance de ouro para os dois, cujo deslumbramento com flamingos usando fraldas para não emporcalhar o jardim (!) e um guarda-roupa cheio de sáris à disposição de Audrey para a cerimônia dá ao espectador uma pálida ideia da debilidade espiritual que os define. Por insólito que pareça, a breguice que fazem questão de ostentar vira uma grande aliada na elucidação do crime que dá azo ao argumento central do longa, com vários suspeitos, cada qual munido de uma forte razão para cometer o delito, encerrados num ambiente suntuoso, muito semelhante ao que se tem em “Entre Facas e Segredos” (2019), de Rian Johnson, até do ponto de vista estético.

Aniston e Sandler mantêm o vigor da parceria inaugurada no filme de Newacheck, muito mais cabeça, realçada por sequências em que oscilam da bravura e da impetuosidade para uma covardia patética de um quadro para o outro, colocando quem assiste no meio daquele pandemônio, junto com eles. Essas ousadias narrativas, tão simples e tão refinadas, fazem de “Mistério em Paris” uma espiral de acontecimentos imprevisíveis e, repita-se, ilógicos, precisamente o que espera de uma história dessa natureza.


Filme: Mistério em Paris
Direção: Jeremy Garelick
Ano: 2023
Gêneros: Mistério/Comédia
Nota: 8/10