Comédia primorosa na Netflix vai acalmar sua alma e deixar sua semana mais leve Divulgação / Pathé Films

Comédia primorosa na Netflix vai acalmar sua alma e deixar sua semana mais leve

Nem toda a vastidão do mundo é capaz de deter alguém que, ao cabo de décadas de trabalho duro, consegue, afinal, a certeza de que irá poder gozar de um merecido descanso pela eternidade afora. Os protagonistas de “A Fuga dos Avós” pareciam figurar entre esses poucos privilegiados, não fosse um detalhe nada desprezível. No filme de Fabrice Bracq, o diretor espalha pequenas iscas, repisando clichês e ressuscitando velhíssimas piadas sobre a velhice iminente e a vida a dois de pessoas que aprenderam a suportar incômodos de alguma monta em nome da garantia de um futuro estável inclusive (ou sobretudo) sob o ângulo do sentimento, ratificando em boa medida a opinião de Machado de Assis (1839-1908) acerca das ilusões do matrimônio, que pode, sim, se constituir de amor como fundamento — mesmo depois de um século de aborrecimentos de parte a parte, com picuinhas de um cotidiano mais e mais acelerado ou as angústias existenciais que aleijam o espírito —, mas não para de pé sem uma porção de pequenezas materiais. Até que começa a tirar o glacê de amenidades e aos poucos aprofunda-se no mote da história.

As insatisfações — com o trabalho, com os tempos, com a vida — são elaboradas pelo roteiro, de Bracq e Guillaume Clicquot, de forma a apontar para a crise de identidade que, no fundo, orienta o enredo. A atmosfera de celebração perene de certa burguesia choca-se com o que se passa nos bastidores da cena, registro do desajuste inefável por trás de uma família. Apesar de venderem saúde, Marilou e Philippe Blanchot, os jovens senhores a que o título se refere, estão bem cansados, de uma exaustão que não revela exatamente sua origem ou se tem ou não justificativa, mas que os encerra na paralisia emocional onde só conseguem voltar os olhos para si mesmos. Michèle Laroque e Thierry Lhermitte encarnam à perfeição as inquietações de seus personagens, momento que o diretor aproveita para dar ao público algumas explicações sobre o que vai se desenrolar na sequência. Deboche, sarcasmo, a picardia da cosmovisão dos franceses sobre os temas prosaicos da vida como ela é — junto com muita hipocrisia civilizada, por evidente, vêm à superfície em sequências a exemplo da que disseca, pouco depois da abertura, as humanas fraquezas num convescote de família em que uma das parentes é chamada pela duvidosa (e sugestiva) alcunha de Quiche. Assim que Philippe fica sabendo que conseguiu uma aposentadoria integral, dirige-se, eufórico, ao consultório da mulher, dentista especializada em odontogeriatria — outra das blagues de um delicioso politicamente incorreto do texto de Bracq e Clicquot. Como rindo castigam-se os costumes, o diretor menciona uma das eternas greves de Paris lideradas pelos coletes-amarelos contra a reforma previdenciária.

Os planos de passar o resto de seus dias numa cidadela na costa portuguesa, talvez a Praia da Luz, conhecido reduto de idosos europeus endinheirados — e também famosa pelo sumiço de Madeleine McCann em 2007 —, começa a fazer no instante em que reviravoltas tão comezinhas quanto violentas os empurra de volta ao tédio das relações compulsórias e, por conseguinte, plenas de contratempos e desagrados. Nesse ponto, Nicole Ferroni e Judith Magre crescem como Cécile, a primogênita atordoadamente cômica dos Blanchot, e Line, a Mamiline, mãe de Philippe, conferindo substância dramática a uma história pouco original, rediviva de tempos em tempos, como se tem no recente “O Preço da Família” (2022), ainda que com o sinal trocado.


Filme: A Fuga dos Avós
Direção: Fabrice Bracq
Ano: 2019
Gênero: Comédia
Nota: 8/10