Novo filme de suspense que acaba de estrear na Netflix é uma pequena obra-prima do cinema Divulgação / Cavatina Studio

Novo filme de suspense que acaba de estrear na Netflix é uma pequena obra-prima do cinema

Permitir-se desfrutar a vida com outra pessoa é uma oportunidade de conhecer-se a si mesmo. Sentimentos dos mais idiossincrásicos, o amor exercita em nós o poder de retomar caminhos que tínhamos por interditados para sempre, de fazer brotar de novo, de uma terra árida e quase estéril, os frutos que tornam mais doce o existir, prazer que se realiza em toda a sua plenitude se nos abandonamos e abrimos a guarda para que o outro se aposse de nós e deixe-nos também seus sabores mais aprazíveis. A lógica do amor repele solenemente contratos, acordos, pactos, normas, regras, métodos, em especial os que tentam versar sobre outras humanas emoções, e tanto mais os que têm a pretensão de calar o que pode haver de mais genuinamente valioso no espírito do homem, sua fé no outro, terreno onde começa a brotar o fundamento da benquerença maior como elo mais estreito e mais indevassável entre duas almas que só se realizam no mesmo corpo. O amor, o mais humano dos sentimentos, deslinda-se na versão mais poética e mais transformadora de vida porque alcança em nós as esferas de que nunca julgáramo-nos merecedores, tão altas e tão etéreas que alongam-se para muito além do próprio tempo em que acontecemos.

Amor, a uma apreciação menos cuidadosa, passa longe do entendimento racional sobre o mundo, da capacidade de raciocínio à prova de súbitas influências externas, da frieza imprescindível para se absorver o próprio sentimento amoroso, uma vez que o amor é fogo que queima sempre, mesmo em cenários inóspitos, onde o gelo da indiferença e do egoísmo parece sufocar tudo. Entretanto, sacrificar a parte mais nobre de si no altar das oferendas dos outros acaba não sendo a melhor saída, por pior que a vida possa estar. É nessa corda tênue entre a pureza do amor e a rispidez de seus aspectos práticos — coroados pelos reveses que sempre soem pegar-nos a todos no contrapé do ramerrão do cotidiano —, que Marta Minorowicz equilibra o seu “Delírio”, crônica sobre o malogro de um casamento a que tem a ousadia de acrescentar elementos de fino suspense, deixando mais pesadas as máscaras sob as quais se refugiam seus personagens.

A longa sequência de abertura, em que a fotografia de Paweł Chorzępa destaca o cinza morno do rigor do inverno em Gdynia, no litoral da Polônia, dá algumas pistas quanto ao que se deve esperar do roteiro de Minorowicz e Piotr Borkowski. A diretora se alonga diante da fachada da escola em que Hanna, a protagonista vivida por Agata Buzek, trabalha como professora de uma turma do ensino fundamental. O aspecto fantasmagórico do prédio, como se fosse um castelo, uma fortaleza ou mesmo um mausoléu entrega muito da personalidade de Hanna, essencialmente melancólica a despeito do sumiço da filha, Karolina, de Anna Paliga, com que tem de lidar mesmo que visivelmente desorientada pela perda. É inevitável não trazer a narrativa para o terreno das fábulas, e se Buzek fosse alguns anos mais nova, poder-se-ia dizer que era a típica princesa encerrada em seus aposentos por pais superprotetores e algo sádicos. Quiçá inconscientemente, Minorowicz reproduz essa fórmula com o sinal trocado, fazendo de Hanna uma heroína mais e mais audaciosa, destemida a resgatar Karolina de seus algozes ela mesma, uma vez que as investigações por um detetive profissional começaram a interferir nas economias para quitar a hipoteca.

Ao passo que expõe as chagas de uma união que se esfacela também devido à lembrança permanente da filha perdida (mas não só) — uma sequência, durante a lenta virada do segundo para o terceiro ato, trata de dirimir qualquer possível dúvida residual quanto à falta de alguém à mesa (e se começa a especular sobre a conveniência do eventual desaparecimento de Piotr, o marido vivido por Marcin Czarnik) —, a diretora é hábil em incluir os tantos lances de suspense em “Delírio”, muitos a cargo de Janina, a coordenadora da escola, ótima atuação de Małgorzata Hajewska-Krzysztofik.


Filme: Delírio
Direção: Marta Minorowicz
Ano: 2022
Gênero: Drama/Suspense
Nota: 9/10