Um dos filmes mais devastadores do cinema está na Netflix e prova que a vida é mais brutal do que a ficção

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Malgrado cheia de imperfeições e dificuldades quase inexequíveis, a vida há de ser sempre encarada como um presente que nos concede a Providência — ou mesmo o acaso, para os que só creem no que pode ser visto. Também por essa razão, a morte, por óbvio, é o maior castigo a que alguém pode ser condenado e, por mais que se sofra, não existe uma só criatura que se conforme em ter sua passagem pela Terra abreviada em um único dia. Em 1789, um documento passou a servir de referência aos povos do mundo inteiro quanto a se preservar a vida sob qualquer circunstância, independentemente de quem se tratasse. A Declaração dos Direitos dos Estados Unidos — expedida com quase 160 anos de antecedência sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 — em sua quinta emenda, prevê o emprego da pena de morte, desde que “respeitado o devido processo legal”. A décima quarta emenda, promulgada em 1868, também não abre mão de julgamento equitativo e isento para crimes que aludam à privação de vida por qualquer um dos cinquenta estados americanos, mais o Distrito de Colúmbia e os catorze territórios.

A primeira sentença de morte em colônias americanas subordinadas ao Império Britânico de que se tem notícia data de 1608, quando o capitão George Kendall foi fuzilado em Jamestown acusado de espionagem em favor do governo espanhol. De lá para cá, foram 15.391 execuções por fuzilamento, cadeira elétrica e, mais recentemente, via injeção letal, o método mais moralmente aceito, uma vez que não degringola no show de horrores de miolos espirrando de crânios arrebentados ou olhos que explodem num macabro rio de sangue depois da última agonia do sentenciado, potencial candidato a mártir, por mais abjeta que tenha sido sua falta. Já vem de algum tempo as discussões a respeito da abolição definitiva e irrevogável da pena capital. Em 1991, Cameron Todd Willingham (1968-2004) foi acusado de homicídio qualificado pela morte de suas três filhas num incêndio criminoso. Dezoito anos depois, em 9 de setembro de 2009, o jornalista David Grann publicou na revista “The New Yorker” um artigo intitulado “Trial by Fire” (“julgamento sob fogo”, em tradução livre), em que perguntava na linha fina se o Texas havia executado um homem inocente. Era o início de um novo redemoinho sobre o tema na imprensa nacional.

Remexendo o processo em todos os seus detalhes mais escabrosos, Grann se deparou com uma investigação porca, desmazelada, que deu azo ao julgamento espetacularesco de um réu que se sabia inocente e, portanto, nunca assumiu sua pretensa culpa. O diretor Edward Zwick enxergou no caso, acertadamente, o argumento para contar uma grande história. “Justiça em Chamas” (2019), que no título original aproveita a chamada do articulista da “The New Yorker”, martela exatamente nessa ideia: o Texas executou um inocente, e o fez por desídia, revanchismo, clamor popular ou qualquer outro sentimento que não a observância do ordenamento jurídico ou o piegas amor às leis. O roteiro de Geoffrey Fletcher, ambivalente, introduz Willingham como um beberrão inveterado e sem freio, o que vai dando a sensação de que teria sido mesmo capaz de tamanha perversidade, ainda que pela incúria de uma personalidade já fraca, tanto mais entorpecida pelo álcool. Conforme a história toma corpo, o núcleo da casa em que o protagonista mora com a mulher e as três filhas pequenas, Amber e as gêmeas Kameron e Karmen, torna-se um pouco menos obscuro e vai se chegando perto talvez não de se aceitar, mas de se entender a tristeza profunda desse homem, que contamina tudo.

Jack O’Connell estrela o filme de Zwick. O’Connell, cada vez mais maduro do ponto de vista técnico e sempre persuasivo na interpretação de tipos como Willingham, machões perdidos no frágil conceito de virilidade que foram construindo pela vida afora — recomendo fervorosamente a apreciação de seu trabalho em “Terra Selvagem” (2019), de Max Winkler, na pele de um pugilista amador explorado pelo irmão, de Charlie Hunnam —, sustenta a debacle de seu protagonista com a dignidade do homem emasculado, mas que só chora na solidão de sua cela. Nas sequências do julgamento propriamente dito, meio arrastadas, quem rouba a cena é a sobriedade emocional de Emily Meade como Stacy, a ex-mulher sobre quem nunca se consegue extrair nada, nem se acredita na possível inocência do ex-companheiro, nem já conseguiu superar as perdas.

Na virada do segundo para o terceiro ato, a entrada em cena de Elizabeth Gilbert, a militante que se empenha mais pelo fim da pena de morte que pela reconstrução da família, abalada pela morte recente do ex-marido, pai de seus filhos, é o sal do enredo. Laura Dern galvaniza uma trama que já parecia arrefecer e prepara o filme para as duas grandes reviravoltas, uma envolvendo sua personagem, o que acaba desembocando na tragédia de Willingham. Que se perpetua em outros homens e mulheres pobres, brancos ou não. Mas sempre pobres.


Filme: Justiça em Chamas
Direção: Edward Zwick
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Biografia
Nota: 9/10