Em algum momento da vida, todos já nos perguntamos se fazíamos a coisa certa. Conforme os anos avançam, tomamos a real dimensão quanto ao impacto de nossas escolhas, para nós mesmos, mas principalmente para aqueles que nos rodeiam. Se viver já parece com uma aventura sem que tenhamos de fazer nada, esse aspecto meio fictício, até farsesco da vida recrudesce nas quadras em que fomos confrontados — primeiro por nós mesmos; não muito tempo depois, por absolutamente todo mundo — acerca do que pensamos ser certo ou errado. Ninguém tolera ser obrigado a admitir fracassos de nenhuma ordem, e aguenta menos ainda ter de passar por cima de suas convicções para agradar quem quer que seja, atitude que por si só já se constitui num vasto foco de desentendimentos. No momento em que se considera esses transtornos como parte indelével da rotina, toma corpo uma espiral de mudanças, e se boas ou ruins é o jeito como alguém vive que vai dizer. A despeito do temperamento mais ou menos aguerrido de quem se põe contra umas tantas guinadas da vida, há cenários que só se realizam em condições muito específicas, sob as quais só cabe ao homem se submeter.
Romain Gavras expõe muito do que pensa a respeito das complexas e tensas relações a governar o mundo de homens diferentes entre si, mesmo que nem tenham exatamente um perfil belicoso e preferissem nunca ter de sair do conforto de pusilanimidade. Seu “Athena” (2022), crônica repleta de lances impactantes da vida nos subúrbios de Paris hoje, não procura condenar vilões nem eleger heróis que entregam a vida de bandeja para que a humanidade se salve. Gavras parece não ter pejo algum de dizer o óbvio — até porque o óbvio sempre tem seus incontáveis meandros. Essa talvez seja a maior qualidade de seu filme que, fugindo de abordagens declaradamente políticas, chega a sugerir genuínas iluminações no que diz respeito ao problema recorrente de uma juventude que se perde em meio à barafunda da conjuntura sociopolítica do nosso tempo, sistêmica no mundo todo. Esse apocalipse real e sem nada do glamour dos filmes de ficção científica espreita-nos à socapa, vestido com as roupas de um passado de opróbrio.
O plano-sequência com que o diretor escolhe abrir seu longa já apresenta uma situação em que a tônica do desconforto fica mais que evidente e alcança em cheio o espectador. Abdel, um militar algo desiludido com seu ofício, ajuda nas investigações de mais um episódio de violência perpetrado por policiais contra indivíduos não-brancos, quase todos argelinos e marroquinos, em Athena, bairro muito afastado do burburinho da cena turística e boêmia de Paris. A diferença é que dessa vez o personagem de Dali Benssalah se depara com o assassinato de Imir, treze anos, seu irmão caçula. O roteiro de Gavras, Elias Belkeddar e Ladj Ly vai municiando o público de cada vez mais informações quanto a cravar que a polícia é mesmo a culpada, e desse ponto em diante o filme se desdobra em explorar a dicotomia desse homem atormentado, vítima de una provação sobre-humana, e Benssalah brilha na sequência em que seu personagem encara a comunidade, furiosa, numa coletiva de imprensa. Minutos depois de começar a oferecer as desculpas oficiais das autoridades, alguém lança um coquetel molotov na sua direção. Logo se sabe que se esse manifestante é Karim, de Sami Slimane, parente do morto e de quem deveria defendê-lo, mas parece estar do lado oposto ao que seria o mais coerente. O desalento no seu olhar consterna.
O filme é repleto dessas tomadas extensas, quase cansativas, a fim de dar à narrativa uma aura de saga antropológica, bem ao estilo de Costa-Gavras, pai do diretor. Foram esses artesanatos, mais do que o enredo, batido, que fizeram “Athena” — uma história banal, mas minuciosamente bem contada — ser tão bem recebido no Festival de Veneza. Fazer bom cinema às vezes é um mistério sem segredo.
Filme: Athena
Direção: Romain Gavras
Ano: 2022
Gêneros: Drama
Nota: 8/10