Qual é o sentido de se ver um filme que ao fim de duas horas não terá lhe dito absolutamente nada? Muita gente vai dizer que ao menos se fez aquela espécie de higiene mental: senta-se na frente da televisão e entra-se numa espécie de transe hipnótico, de preferência com um bom balde de pipoca ao lado, para tornar a “experiência” mais eficiente. A função da arte à luz da catarse, como meio que o homem tem para se livrar de sentimentos que a vida em sociedade desencoraja e o ordenamento legal pune — às vezes, com rigor; noutras, nem tanto — nunca foi tão valorizada. Uma casa para ser habitável precisa de limpeza constante e o mesmo se dá com a alma humana: há que se botar o lixo para fora e, de preferência, queimá-lo. Contudo, a arte não se presta só a isso — ou aquilo que se pode chamar verdadeiramente de arte, pelo menos. A arte pode, também, ser uma importante ferramenta de transformação social. Nos primórdios da humanidade, nossos ancestrais descobriram o poder das mais diversas manifestações artísticas, ainda muito rudimentares, claro, por meio da pintura nas cavernas, dos cantos de guerra e de paz, da contação de histórias. Destarte, o homem foi desenvolvendo a capacidade de pensar em outras maneiras de solucionar seus problemas e, à medida que novos cenários se desenhavam e novas realidades se impunham, mais autoconfiante se sentia e mais apto se tornava quanto a enfrentar suas adversidades. A arte lhe serviu para ampliar seu pensamento, e isso nem é uma figura de linguagem: quanto mais o homem criava, mais pensava e maior se tornava sua caixa craniana. Hoje, a Bula tem cinco filmes no catálogo da Netflix, todos filosóficos — talvez o gênero mais cabeçudo do cinema e que, justamente por ser cinema, não prescinde da emoção — para ajudar você a sacudir a bananeira, a pasmaceira, o lero-lero, o mimimi. Os títulos são sugeridos do lançado há menos tempo para o mais antigo e não observamos nenhum outro critério. Pense, exista!
É muito difícil um casamento resistir à perda de um filho — e o casal que consegue tal proeza pode reivindicar essa vitória. Ao se sobrepor à vida, a morte reafirma seu inesgotável poder sobre os homens, por mais escondida que esteja. A frustração, a tristeza, o desespero de ver morrer um filho, a vida tendo desrespeitado seu sentido mais primevo, é o que se absorve da maneira mais brutal em “Pieces of a Woman”. Ao espectador, é concedido o direito de observar de perto — perto demais — o trabalho de parto de Martha Weiss, ao longo de sombrios 25 minutos — e só ao fim dessa agonia o nome do filme surge na tela. Com essa decisão artística, o diretor Kornél Mundruczó quis fazer o público tomar parte no tormento da personagem principal, fazê-lo perceber que havia uma vida se abrindo para o mundo e essa vida, por alguma razão, escapou. Martha é absorta por uma espiral de sentimentos múltiplos: a alegria fugaz de se sentir mãe logo é substituída por um luto que se prolonga na vida da protagonista indefinidamente, estado do qual ela não consegue se livrar, e que vai impactar de modo decisivo seu relacionamento com o marido, Sean, e a mãe, que reconhecem sua dor, insistem para que ela redescubra o prazer na vida, mas não sabem como persuadi-la, e metem os pés pelas mãos. Sean, em particular, passa a demonstrar uma ligeira indiferença, primeiro pelo sofrimento da companheira, depois pela própria Martha, que por sua vez perde completamente o interesse pelo parceiro. O roteiro faz com que se entenda que também ele padece com a tragédia, mas que isso não lhe serve de licença para sua covardia. Enquanto isso, Martha se desintegra ao ponto de nem ostentar mais qualquer coisa de humano. Torna-se uma criatura algo transcendental, como um espectro que ronda a matéria que lhe compunha, ansiando por voltar àquele corpo, impressões que a audiência só nota graças ao espantoso talento de Vanessa Kirby. Sua Martha Weiss é um dos retratos mais pungentes de um personagem em sua condição mental, uma mulher despedaçada que possivelmente nunca volte a estar por inteiro outra vez, ainda que o final empenhe uma promessa de felicidade.
Passadas três décadas e meia, vem à luz a continuação da história sobre um policial que caçava androides em Los Angeles. O original, lançado em 1982, passava-se em 2019. O futuro já está obsoleto, mas a saga resistiu. Dessa vez, a trama se desenrola em 2049 e a tarefa coube a K, um novo blade runner, que não caça androides, apenas os “aposenta”. Num amanhã ainda menos promissor, os replicantes se tornaram mais saidinhos e inspiram o medo na população e a fúria das autoridades. O trabalho de K fica um tanto mais difícil devido à descoberta de uma caixa na qual está o mote do novo “Blade Runner”: uma androide gera uma filha, cujo pai é um homem de carne e osso. O diretor Denis Villeneuve aceitou o desafio de dar sequência à história, que decerto não para por aí, por temer que outra pessoa não dispensasse ao filme o tratamento que ele merecia. Foi o diretor certo para o filme certo: “Blade Runner 2049” é fiel à ideia que lhe deu azo, sem, no entanto, ter ficado com cara de um simples pastiche do original. Villeneuve conseguiu, a partir de um filme-conceito amplamente conhecido e cultuado, imprimir seu estilo e sua visão de mundo. Um clássico à altura de sua genealogia.
Com “Dunkirk”, Christopher Nolan conseguiu duas verdadeiras proezas. A primeira foi entregar um filme absolutamente distinto do que vinha apresentando em trabalhos a exemplo de “Batman: O Cavaleiro das Trevas” (2008) e “Interestelar” (2014). Por aí, já se vê que Nolan é um diretor plural e ambicioso, mas a cereja do bolo está mesmo aqui. Sua segunda façanha foi ter imprimido tamanho realismo e dramaticidade numa história carregada de significado. O filme conta, com o rigor intelectual necessário, como se deu o resgate de mais de 300 mil soldados britânicos na costa francesa, completamente sitiados pelas tropas de Hitler. Só o número de figurantes necessários para se emprestar credibilidade às sequências já é uma epopeia à parte, mas a força do talento de Nolan dá conta do recado direitinho. Sem nenhum exagero, “Dunkirk” comprova que Christopher Nolan se superou frente a todos os seus excelentes trabalhos anteriores e produziu a obra definitiva sobre operações militares arriscadas no decorrer de uma guerra. Os cinéfilos esperamos que ele seja vencido.
O mundo cresce à razão geométrica, enquanto os recursos para acompanhar tanto crescimento — e tanta gente — se expandem em progressão aritmética, aos poucos. Esse parece ser o plot de “Onde Está Segunda?”, do diretor Tommy Wirkola. Os filmes de ficção científica são pródigos em se valer de expedientes os mais mirabolantes a fim de levar um enredo que anuncia futuros nada promissores. Aqui, sete irmãs gêmeas, nascidas num contexto histórico de rigoroso controle da natalidade, só conseguiram ter uma existência razoavelmente normal graças à obstinação — e à criatividade — do avô; do contrário, apenas uma seria admitida na vida em sociedade, enquanto as demais permaneceriam congeladas, até que a conjuntura estivesse menos nebulosa, a produção de alimentos fosse suficiente para todas as bocas e a economia não ameaçasse mais colapsar. As irmãs seguem com as atividades de sempre, até que, trinta anos depois, uma desaparece sem deixar rastro. O filme conduz a narrativa adequadamente, privilegiando as sequências de ação e relegando o maior detalhamento das idiossincrasias psicológicas de cada personagem a um segundo plano, embora Noomi Rapace não deixe a peteca cair por completo e forneça, por meio do bom desempenho em cena, pistas a fim de que o espectador saiba quem é quem. O argumento do mundo distópico vai, paulatinamente, tomando corpo, ao passo que a história se aprofunda nos elementos que facultam ao público vislumbrar no filme a escassez de comida, os lugares tomados de gente, o caos que se avizinha. Para tanto, Wirkola lança mão de um grande número de figurantes, de forma que a sensação de abarrotamento chega fácil até o lado de cá. Também aos poucos, vai-se tomando pé da situação das protagonistas, do quão tiveram de negligenciar a própria vida em nome de uma causa maior, qual seja, o bem coletivo. A persona do avô, de Willem Dafoe, o redentor que as faz escapar do gelo eterno, mas as destina a outra natureza de danação, igualmente apenas se delineia, quando renderia um mote à parte no roteiro — a propósito, “Onde Está Segunda?” vale pelo excelente trabalho dos atores, Rapace, Dafoe e, olho nela, Glenn Close. Para encerrar, só cabe a quem assiste inferir que o intuito do diretor Tommy Wirkola foi mesmo centrar as atenções sobre o vigor das cenas de movimento, muito boas, por sinal, e essenciais a fim de transmitir a percepção de que a vida por ali andava de fato dura. É um modo de ver as coisas.
Aos 10 anos, Chihiro é uma menina que, como quase todas as outras crianças da mesma idade, pensam que o mundo gira em torno do seu próprio umbigo, e, claro, vira uma fera ao saber que terá de se mudar com os pais. Eles dão início a essa longa viagem, mas a menina nota que alguma coisa dera errado. Seu pai certamente se perdera e conduzira a família para a entrada de um imenso túnel, guardado por uma estátua. Ainda que a situação se apresente o seu tanto inusitada, os pais de Chihiro entram, levando a menina consigo. Depois de andarem por algum tempo, chegam a um vilarejo aparentemente abandonado, embora numa das casas esteja posta uma mesa cheia de comida. Enquanto os pais se fartam, a protagonista sai num passeio e conhece Haku, que lhe recomenda deixar o povoado o quanto antes. Chihiro fica impressionada com a veemência do menino e volta correndo ao encontro dos pais. Para sua surpresa, nessa fábula sobre autoconhecimento e procura de respostas para os insondáveis mistérios da existência, ela se depara com dois porcos gigantescos. Começa um novo caminho para Chihiro, através de um mundo fantasmagórico, cheio de seres monstruosos e completamente hostis à presença humana.