Os dilemas existenciais, tão comuns na vida do mais ordinário dos ordinários, nos tiram do prumo ao se prestar como uma espécie de prova de fogo, a fim de descobrir onde somos capazes de chegar em busca de um ideal, de uma convicção, de um sonho. A pobre natureza humana tem a necessidade de que lhe permitam deixar o rigor do mundo, a austeridade da existência, e partir para uma dimensão em que tudo soe mais genuíno, mais racional, em que a vida mesma faça mais sentido — ainda que por um tempo limitado, ainda que esse cenário só exista para aqueles que o planejam. As grandes transformações sociais começam dentro de cada homem, daí ser impossível, à luz do pensamento de gênios como o sociólogo alemão Max Weber, uma pretensa salvação da humanidade. A humanidade só se salvaria, irredutivelmente, se cada um de nós se desse conta de suas faltas e se emendasse, o que, é uma lástima, nunca vai acontecer. Cada um é responsável por sua própria redenção — ou sua própria desdita —, sendo sempre possível, evidentemente, arrepender-se, de coração, até o último segundo, tomar um caminho diferente e refazer a vida tanto como possível. No entanto, nunca satisfeito com o mundo da forma como se lhe apresenta, o ser humano se devota a combater os demônios que o atacam, tenham a cara que quiserem ter. Visando a libertar o povo de seu país de uma sucessão de governos autocráticos, um homem se torna membro de uma guerrilha, com o propósito de assaltar bancos e repartir o dinheiro entre quem precisa. O uruguaio José Alberto Mujica Cordano, ex-paramilitar, ex-preso político, ex-mandatário maior de sua terra e hoje apenas um humilde agricultor familiar e sossegado octogenário, retirado ao bucolismo de seu pequeno sítio, é o protagonista de “A Noite de 12 Anos” (2018), do diretor Álvaro Brechner. Esse e mais cinco títulos, lançados entre 2020 e 2014, todos no acervo da Netflix e com alguns prêmios na algibeira, não merecem ser relegados ao ostracismo.
É muito difícil um casamento resistir à perda de um filho — e o casal que consegue tal proeza pode reivindicar essa vitória. Ao se sobrepor à vida, a morte reafirma seu inesgotável poder sobre os homens, por mais escondida que esteja. A frustração, a tristeza, o desespero de ver morrer um filho, a vida tendo desrespeitado seu sentido mais primevo, é o que se absorve da maneira mais brutal em “Pieces of a Woman”. Ao espectador, é concedido o direito de observar de perto — perto demais — o trabalho de parto de Martha Weiss, ao longo de sombrios 25 minutos — e só ao fim dessa agonia o nome do filme surge na tela. Com essa decisão artística, o diretor Kornél Mundruczó quis fazer o público tomar parte no tormento da personagem principal, fazê-lo perceber que havia uma vida se abrindo para o mundo e essa vida, por alguma razão, escapou. Martha é absorta por uma espiral de sentimentos múltiplos: a alegria fugaz de se sentir mãe logo é substituída por um luto que se prolonga na vida da protagonista indefinidamente, estado do qual ela não consegue se livrar, e que vai impactar de modo decisivo seu relacionamento com o marido, Sean, e a mãe, que reconhecem sua dor, insistem para que ela redescubra o prazer na vida, mas não sabem como persuadi-la, e metem os pés pelas mãos. Sean, em particular, passa a demonstrar uma ligeira indiferença, primeiro pelo sofrimento da companheira, depois pela própria Martha, que por sua vez perde completamente o interesse pelo parceiro. O roteiro faz com que se entenda que também ele padece com a tragédia, mas que isso não lhe serve de licença para sua covardia. Enquanto isso, Martha se desintegra ao ponto de nem ostentar mais qualquer coisa de humano. Torna-se uma criatura algo transcendental, como um espectro que ronda a matéria que lhe compunha, ansiando por voltar àquele corpo, impressões que a audiência só nota graças ao espantoso talento de Vanessa Kirby. Sua Martha Weiss é um dos retratos mais pungentes de um personagem em sua condição mental, uma mulher despedaçada que possivelmente nunca volte a estar por inteiro outra vez, ainda que o final empenhe uma promessa de felicidade.
A partir de 1973, é instaurada uma ditatura civil-militar no Uruguai que se estende até 1985. José “Pepe” Mujica, Mauricio Rosencof e Eleuterio Fernández Huidobro, militantes dos Tupamaros, guerrilha de orientação marxista-leninista, passam a se destacar em ações como roubos a banco e logo são vistos como uma espécie de santos rebeldes, por distribuírem o espólio entre os mais humildes. As forças de repressão fecham o cerco e os três são capturados e levados a uma das unidades para confinamento de revoltosos, onde estão outros nove colegas, sem que seja possível a comunicação entre eles. Os anos se sucedem enquanto o grupo tenta não se entregar à sensação de alheamento. A espera leva 12 anos para acabar e um quarto de século depois, Mujica, aos 75 anos, é eleito presidente do Uruguai.
Responsável por abrir o Festival de Toronto de 2018, “Legítimo Rei” é mais um filme a explorar o intrincado processo de sucessões ao trono no Reino Unido que, não bastasse já ser complexo o suficiente, ainda conta com episódios obscuros, como o que envolve Roberto I (1274-1329), o soberano da Escócia. Robert The Bruce, personagem fulcral na busca do povo escocês por se ver livre da dominação da Inglaterra, luta por seu império, o que lança o país num longo período de instabilidade sociopolítica que se estende no tempo mesmo depois de sua vitória. As desavenças entre escoceses e ingleses voltam a ganhar força com o aparecimento de Mary Stuart (1542-1587), outro membro da realeza escocesa que se levanta contra a Inglaterra, então governada por Elizabeth I (1533-1603), evento retratado em “Duas Rainhas” (2018), dirigido por Josie Rourke. Trezentos depois de Robert The Bruce ter batido o exército de Eduardo II, Jaime VI, descendente do monarca escocês, é coroado também rei da Inglaterra.
A sutil diferença entre terror e horror que se estabelece no cinema é flagrante no trabalho de estreia do diretor Anthony Mandler, responsável pelo registro de clipes de estrelas pop como Rihanna, Beyoncé, Taylor Swift e Shakira. Em “Monstro”, o título leva o espectador mais apressado a crer que o enredo se refira a uma narrativa fantasiosa repleta das criaturas bizarras que todos conhecemos. Bem, há seres monstruosos aqui, mas são todos de carne e osso — e podemos cruzar com eles a qualquer momento. No roteiro, adaptado da biografia homônima de Walter Dean Myers, o protagonista chama-se Steve Harmon, um garoto negro de 17 anos que mora no Harlem, subúrbio barra-pesada de Nova Iorque. Steve não tem nada a ver com os demais rapazes da vizinhança: é um estudante aplicado de um colégio de elite em outro bairro, tem a carreira de cineasta como seu objetivo maior e vive no seio de uma família unida que o ama. Ao fazer um favor para a mãe e ir até a mercearia perto de casa, acaba sendo implicado num roubo violento, que resulta na morte do dono da loja. Steve é preso em flagrante e imediatamente encaminhado a uma penitenciária de segurança máxima, onde permanece aguardando julgamento. Sua vida, como não poderia deixar de ser, é tomada por uma espécie de torvelinho em que quanto mais tenta se desvencilhar de todas as frágeis acusações a que é confrontado, mais é retido para o centro do caos de que sua vida parece que não vai sair. Relato o seu tanto furioso — mas também pontilhado de argumentos burilados ao estado da arte – contra uma justiça completamente viciada, que se deixaria levar pela voz rouca das ruas ao julgar alguém com base em indícios que não resistem a uma análise fria das circunstâncias e, por óbvio, racista, “Monstro” centra fogo na atuação da escrupulosa advogada do personagem principal, que desde o início acredita na versão de seu cliente e, dessa forma, se esmera em defendê-lo, convicta de que, ao cabo de toda aquela tortura, Steve há de receber um veredicto de fato justo, muito mais convicta do que o próprio Steve, aliás. Uma direção que opta por um tom propositalmente confessional, aliada a atuações formidáveis e aspectos de natureza técnica que se revelam essenciais — como o pop-up da câmera nos diversos personagens enquanto o julgamento do protagonista avança —, fazem de “Monstro” um filme de autor, um filme de formação, um filme indispensável. A divulgação massiva de produções como essa nunca resta debalde: são necessários menos de cem minutos para se ter uma visão renovada acerca da vida.
Em “Sicario: Terra de Ninguém”, continuação do aclamado “Sicario: Dia de Soldado”, o diretor Denis Villeneuve, como sempre, deixa sua marca: um filme de acordes vibrantes, seja pendendo para o suspense clássico, seja o misturando ao terror e dando matizes mais pronunciados a este. O soberbo roteiro de Taylor Sheridan conta a história de Kate Macer, agente do FBI escalada para uma força-tarefa a fim de deter o mandachuva do tráfico no México, que administra um poderoso cartel. A operação está envolta em uma densa névoa de mistério, conduzida por policiais de conduta duvidosa, e é em meio a este cenário que Kate terá que combater o sangrento tráfico internacional de drogas, sem se deixar esmorecer nem se seduzir por ele.
Crítica social às religiões, em “PK” Rajkumar Hirani mostra a Índia como ela é: imensa, revoltantemente estratificada, caótica. O país é tão pantagruélico que abriga hindus, muçulmanos, budistas, cristãos, todos fiéis, todos crentes num Deus e nas esperanças que Ele suscita no homem por meio da observação de Suas regras. Na Índia, a despeito de uma população de cerca de 1,4 bilhão de habitantes, a porcentagem de quem ou não acredita em Deus — os ateus — ou não consegue acreditar — os agnósticos — é irrisória. Hirani aborda a dúvida teológica a partir da chegada de um alienígena que, atônito frente ao que considera uma pletora de contradições, não entende a razoabilidade de se valorizar o que não se vê em detrimento daqueles em quem se tropeça pelas ruas. Deus está nos detalhes e, destarte, na sutileza. Quem não entende isso é mesmo incapaz de acreditar, em Deus ou em qualquer outra coisa.