Aclamado por crítica e público, filme sobre os últimos dias de Shakespeare acaba de estrear na Netflix Robert Youngson / Sony Classics

Aclamado por crítica e público, filme sobre os últimos dias de Shakespeare acaba de estrear na Netflix

Um dos artistas mais relevantes da cena britânica, o norte-irlandês Kenneth Branagh tem se mostrado um homem pertinaz quanto a tentar conhecer a fundo os mistérios da performance dramática, encarnada, sem exagero algum, por William Shakespeare (1564-1616). Poucos atores e diretores em Hollywood conhecem o Bardo de Stratford-upon-Avon como Branagh, que se vale de sua origem próxima e da provável semelhança física para assenhorear-se do espírito buliçoso de Shakespeare a fim de levar a termo a perturbadora experiência de conhecê-lo melhor, ouvir suas angústias, testemunhar sua glória, saber-se um homem da mesma forma que ele, por mais que seu talento incomum acabasse por afastá-lo do resto dos mortais. Shakespeare foi grande em tudo, e em sendo assim, esteve toda a vida acossado pelos altíssimos parâmetros que definia para si e os que tinham a felicidade de trabalhar com o poeta, se suportassem seus acessos de raiva e frustração, a solidão diáfana que o perseguia e a circunscrita disposição para o erro e as hipócritas convenções sociais do início do século 17.  

Em “A Pura Verdade” (2018), Branagh desdobra-se entre incorporar o gênio mais soberbo do teatro universal e dirigir uma interpretação fantasiada de sua vida, que ninguém duvida de que pode, sim, ter sido a única. Em 29 de junho de 1613, Shakespeare apresentava um texto romantizado sobre as façanhas do monarca inglês Henrique 8° (1491-1547) no Globe Theatre, em Southwark, na porção meridional de Londres. Durante a execução da cena 4, ainda no primeiro ato, um canhão cenográfico faz arder um incêndio de proporções verdadeiramente homéricas, o que dá azo ao severo bloqueio criativo do dramaturgo. A contraposição da silhueta negra de Branagh em relação às imensas línguas de fogo que lambem furiosas as paredes do teatro — um achado da fotografia de Zac Nicholson — se prestam a um introito à altura tanto da enormidade de Shakespeare como da ousadia bem fundada do diretor-protagonista, que se vale desse argumento, central no roteiro de Ben Elton, para fundar tudo o que dirá acerca da figura de seu personagem. O choque foi de tal maneira violento que Shakespeare jamais pôde tornar a escrever — até aí, tudo verdade. A partir de então, Branagh principia a urdir teorias sobre os possíveis desdobramentos da hecatombe na vida do autor, progressivamente mais abúlico, torturado por esse e muitos outros fantasmas, incapaz de gerir a própria vida, sentindo o peso morto do talento que não saberia mais como domar e paralisado pelo medo, fundante de tantas infelicidades mais. Quase encarnando a alma obsessiva de seu personagem maior, o Bardo se deixa vencer pela paranoia de não se enxergar como a pujança artística que sempre fora, e se seu intérprete tivesse três décadas a menos, Branagh poderia muito bem ser um Hamlet comparável ao de Laurence Olivier (1907-1989) no clássico que ele mesmo levou à tela em 1948. É até meio terrificante a semelhança que vão erigindo entre suas identidades pessoais e suas personas dramáticas Branagh e Olivier, atores soberbos e diretores aplicados. Admiravelmente seguro do que pretende, o norte-irlandês chega, afinal, ao cerne de seu trabalho em “A Pura Verdade”, nome alternativo com que Shakespeare batizara sua versão para a vida de Henrique 8°. Estranhamente, os bastidores do espetáculo passam ao largo do interesse do diretor, lapso perdoável graças à inventividade do espírito irrequieto de Branagh, que prefere se aventurar por outras sendas. A maneira como o casamento de Shakespeare e Anne Hathaway (1556-1623) pode ter refletido os solavancos do insucesso profissional do maior artista moderno do Ocidente desperta sua atenção, e ele se vale do paralelo sagaz de relacionar a morte de seu filho Hamnet, quase homônimo de seu filho dramatúrgico mais ilustre, a sua derrocada existencial. Judi Dench me parece um tanto monocórdia demais no papel irrefutável de mártir protofeminista contraditoriamente encarcerada num matrimônio que se mostra desditoso num repente, mas isso era o máximo de sublevação a que chegava uma mulher em 1613. Para o bem ou para o mal, Branagh lança mão de uma saída deus ex machina e proporciona o final feliz algo farsesco que satisfaz a audiência, sem, no entanto, comprometer a qualidade do longa.


Filme: A Pura Verdade
Direção: Kenneth Branagh
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Ficção histórica
Nota: 9/10