Se a vida tem surpresas, o amor não é nada menos que o encadeamento de fenômenos em que a subversão da lógica é a única lei. O romance de um funcionário público e uma milionária num país marcado por tradições severas e leis draconianas parece até o delírio de algum sonhador incurável — e de certa forma, é mesmo. Como as ilusões nunca precisaram de justificativa ou licença, a humanidade permanece se deixando levar por uma ideia de mundo perfeito que, claro, contempla em grande medida, na maior medida possível, o conceito do amor como uma força verdadeiramente poderosa, e como tal, refratária a todo mecanismo de controle. Dessa maneira, o enamoramento, a paixão, a concertação de duas pessoas quanto a trilhar um mesmo caminho e fazer de suas vidas uma trajetória só, seria antes de mais nada o prólogo de uma revolução, pequena no começo, mas com todos os elementos para adquirir caráter universal e transformar-se na oportunidade mais certa de recompor o mundo como um lugar novo, acolhedor, sem tanta hostilidade, com menos sanha por poder e que refutasse de imediato todo plano de dominação.
Ovacionado pela crítica e queridinho do público no Festival Internacional de Cinema de Berlim de 2016, “Barakah com Barakah”, do saudita Mahmoud Sabbagh, assinala um novo tempo para o cinema, cada vez mais plural, atento às incontáveis possibilidades narrativas e obstinadamente preocupado em manifestar sua alma diversa. Uma das grandes qualidades do roteiro de Sabbagh é, decerto, o jeito leve, despretensioso, de abordar as questões sociopolíticas que pautam a vida nos países da comunidade árabe desde sempre, especialmente os que tomam o islamismo para muito além de uma orientação religiosa. A profissão dessa fé, como todos sabemos, implica diretamente observar costumes rígidos, mormente os que se referem ao contato de um homem com uma mulher, ponto que o diretor-roteirista ataca incisivamente, muito mais que da perspectiva do abismo econômico a separar o casal de protagonistas. O argumento central vai avançando sem nunca deixar de ter clara a intenção de provocar o espectador, insuflar nele primeiro a dúvida sobre se o que se vê não seria apenas matéria de convicção pessoal, para então ir bafejando as premissas que lhe fornecem arcabouço teórico para declinar de respostas fáceis, cômodas e equivocadas.
A Hisham Fageeh cabe um dos Barakah do título, o fiscal da prefeitura de Jidá, na costa oeste da Arábia Saudita, cuja vida se cruza com a de sua homônima, mais conhecida por Bibi. A personagem de Fatima Al Banawi é uma das tantas celebridades das redes sociais que pululam em todo o mundo, mesmo em lugares sobre os quais se conhece tão pouco como essa ilha de prosperidade numa região particularmente desafortunada do Oriente Médio. Os dois se conhecem quando cabe a Barakah verificar se a equipe que realiza uma sessão de fotos com Bibi dispõe da licença necessária — Sabbagh enxerta algumas sequências como essa, de maneira admiravelmente orgânica e corajosa, denunciando um potencial foco de corrupção. O método pelo qual o diretor opta por aproximar os dois, contudo, é involuntariamente farsesco: Barakah se apresenta sempre como um sujeito quase tolo de tão ingênuo, sendo incapaz de conjecturar qualquer contato sexual com a nova amiga sem que ela se torne antes sua namorada (e de preferência por pouco tempo, ascendendo à condição de esposa sem demora), ao passo que Bibi nunca sai da defensiva, paranoica com a possibilidade de ser fotografada ao lado de um homem comum, mas nitidamente balançada por ele (ou pelo que aquela figura tão exótica, tão fora de seu meio pode representar em termos de aventura).
A fim de driblar a onipresente censura religiosa da Arábia Saudita, Sabbagh se vale de subtramas inconsequentes, como a participação de Barakah numa releitura de “Hamlet”, não como o herdeiro do trono da Dinamarca traído pelo tio, mas na pele de Ofélia, sua noiva. Essa inocência do cinema saudita tem uma graça especial, tanto mais se confrontado com que é levado às telas mundo afora. Tudo quase artesanal, quase rudimentar, mas mágico, como toda boa manifestação artística.
Filme: Barakah com Barakah
Direção: Mahmoud Sabbagh
Ano: 2016
Gêneros: Romance/Comédia
Nota: 8/10