Ariana Harwicz entra na mente de um abusador para expor a ruína social

Ariana Harwicz entra na mente de um abusador para expor a ruína social

Com os livros que compõem a chamada Trilogia da Paixão, a literatura da argentina Ariana Harwicz se caracterizou por um estilo visceral e pela abordagem de temas polêmicos dentro do organismo familiar. “Morra, Amor” trata de uma mulher atormentada pela depressão pós-parto e por pensamentos assassinos envolvendo seu bebê; “A Débil Mental” foca na relação desvairada entre mãe e filha; e “Precoce” mergulha numa convivência incestuosa entre um adolescente e sua mãe.

“Degenerado”, romance mais recente da autora, rompe com esse padrão, trazendo para primeiro plano um elemento relegado ao comentário nas obras anteriores: o espectro sociopolítico. Isso não resulta, contudo, num afrouxamento da escolha do conflito central. Muito pelo contrário.

Harwicz sonda a mente de um idoso que estupra e mata uma menina “que mal tinha começado a andar” e desfolha explicações para legitimar/atenuar seu ato. Sua tábula de comparação (ou régua de convencimento) é um estado gregário amoral, corrupto, violento e degradante. No caso da história, uma Europa xenofóbica, moldada por guerras e genocídios, expurgando ideais totalitários e antissemitas até os dias de hoje, com um modelo institucional de justiça forjado pela desumanização e pelo sufocamento dos direitos. Uma espécie de quid pro quo, por mais impensável e doentia que esta possibilidade venha a ser. O mal contraposto a outro mal de modo a bispar apesares, medir justificativas para amansar a culpa.

Sim, trata-se de uma premissa provocativa. Mas não uma retórica, que reverbere dentro do ambiente imaginário. Há uma estratégia de usar o texto para destituir a condição passiva da leitura, sequestrando o leitor para o fosso desta realidade sórdida e instigando-o a refletir e se posicionar ante tais questionamentos, ante os critérios do abusador. Incomoda, embrulha o estômago em certos momentos, mas opera de forma irresistível. E isso se deve sobremaneira ao procedimento narrativo, que arrasta a tudo num fluxo de consciência tenso, labiríntico, cruzando monólogo interior e assalto de vozes inominadas, mesclando a crueza do relato dos fatos e um tipo de poesia selvagem.

Por mais pretensioso que possa soar, Harwicz oferece uma experiência desconcertante, uma incursão pelos cômodos sombrios de um pedófilo que era tido como um cidadão exemplar, acima de qualquer suspeita pela comunidade que residia no interior da França, e que gradualmente vai secretando raciocínios torpes, a exemplo de “uma relação entre um homem adulto e uma garotinha é possível”, e detalhes do que cometeu com fria naturalidade. Faz parte de sua tentativa de absolvição escavar o passado e trazer à tona episódios de uma infância marcada pelas brigas entre os pais e seus ecos traumáticos, bem como mencionar as limitações da velhice, do corpo alquebrado. Tais alegações, porém, escondem ardis que serão desmascarados ao longo da passagem do personagem pelo sistema penitenciário e em depoimento no tribunal. O testemunho desorientado e movediço no tempo se constitui de fragmentos que vão se encaixando para desenhar uma personalidade insidiosa que, ao mesmo tempo que clama inocência, desfila considerações perturbadoras, criando um jogo de manipulação sensorial no qual, quanto mais se entra, mais se percebe um traço de algo prazeroso e libertador.

Por isso a sociedade é seu anteparo, sua contraparte. E aí está a grande sacada do livro: mostrar um monstro, e nunca um mentiroso. Sim, seu crime é hediondo. Sim, seus pontos de defesa são completamente distorcidos. Ainda assim, toda sua argumentação com fundo behaviorista tem base na atualidade política e social, inclusive parecendo extraída, com as devidas proporções, da vivência da própria autora, uma argentina radicada em território francês. A certa altura, o personagem escracha a hipocrisia da “democracia agravada, essa fraude”, onde “todo mundo é igual num sistema que exalta a diferença”, citando “os latinos macacos dançantes com tetas e bundas”. Se a psicologia humana é moldada pelo contexto comportamental de um grupo, ser um monstro num ambiente de monstruosidade não é ser um pária, mas um igual.

Harwicz transita por esse caminho perigoso sem concessões ou soluções fáceis, como se carregasse um espelho que mira no leitor a cada passagem chocante ou trecho controverso, obrigando-o a reputar seus valores, suas concepções morais, sua conduta social. O conflito central é somente um dispositivo para discussões mais amplas, que transcendem os limites paginados e batem à porta da realidade em notícias, manifestações populares, talvez na experiência pessoal de quem está lendo esta crítica. O grande mérito de “Degenerado” é que será um livro sempre vivo, repercutindo os pulsos cardíacos de um mundo no qual um ato tão escandaloso vai se tornando corriqueiro, no qual o absurdo se dissolve na plausibilidade do terror. “A coragem e a verdade são extremamente raras”, observa o narrador. E angustiantes também.


Livro: Degenerado
Autora: Ariana Harwicz
Editora: Instante
Páginas: 128 páginas
Avaliação: 4,5/5