Viciante, macabro e assustadoramente belo, filme gótico na Netflix te fará contorcer no sofá Kerry Haye / Universal Pictures

Viciante, macabro e assustadoramente belo, filme gótico na Netflix te fará contorcer no sofá

A depender dos cônjuges, um casamento pode ser fonte inesgotável de segredos e decepções. Se no começo a união de duas pessoas — de dois mundos absolutamente paralelos, portanto — consegue se mostrar forte o bastante e superar diferenças as mais incômodas, à medida que as relações se sedimentam e um passa a, verdadeiramente, conhecer o outro, surgem revelações um tanto desagradáveis de parte a parte, embora um lado sempre tenda a ser o mais obscuro. Essas imperfeições da vida a dois são exploradas pelo expediente artístico desde sempre. Em 1816, a escritora britânica Mary Shelley (1797-1851) teve, aos dezoito anos, a iluminação de empregar a metáfora do homem remendado, alquebrado, submetido a toda ordem de ultrajes, para, entre outras questões, levantar o cinismo imanente nos vínculos humanos, amorosos, inclusive. O gênio de Shelley houve por bem conferir à narrativa um pano de fundo tétrico, categoria ainda em gênese desde que, em 1764, o inglês Horace Walpole (1717-1797) publicara “O Caatelo de Otranto”. Os temas abordados em “Frankenstein” que assombravam Shelley — o desconhecido, a ruína moral, a tentativa de redenção, a morte — certamente atemorizariam os leitores. Era nisso em que, acertadamente, ela se fiava.

O diretor Guillermo del Toro segue a linha de Shelley no que respeita a infundir o pânico no espectador mediante a exposição e a consequente derrubada de tabus. Del Toro é simplesmente genial em inventar realidades confusas, sobrepostas umas às outras, cada qual carregada de simbolismo, e, o mais impressionante: prescindindo do uso indiscriminado da computação gráfica e optando por privilegiar a representação física dos elementos que caracterizam boas histórias de terror, sem prejuízo da emoção. Esse jeito particularmente cuidadoso de retratar o que pode haver de mais baixo no homem (a ganância, o ímpeto de subjugar, o talento para o mal de forma ampla) é só um vaticínio de como o público vai absorver seu trabalho. E o resultado, mescla bem dosada de originalidade e tradição, nunca desaponta.

“A Colina Escarlate” (2015) orbita nesse universo, lançando mão de emoções comezinhas a fim de denunciar comportamentos monstruosos. No filme, a americana Edith Cushing, de Mia Wasikowska, órfã de mãe desde tenra idade, criada por Carter, o pai amoroso, mas meio possessivo vivido por Jim Beaver, desenvolve um gosto nada comum por livros, sobretudo para a época e para uma mulher. Edith já se acostumara aos comentários que a associam a Jane Austen (1775-1817), a autora do badalado “Orgulho e Preconceito” (1813), que morreu solteirona involuntária aos 41 anos, e se dedica com cada vez mais afinco a uma possível carreira de romancista de terror gótico. A heroína de Wasikowska até pode, apressadamente, se parecer com Austen; contudo é mesmo o espectro da criadora de Frankenstein, que sobreviveu ao marido, Percy Bysshe Shelley (1792-1822), o que mais se aproxima de sua natureza. Muito mais afeta à companhia dos livros que das outras pessoas especialmente a dos homens, Edith abre o flanco ao cerco do britânico Thomas Sharpe, o baronete interpretado por Tom Hiddleston que chega a Buffalo, no estado americano de Nova York, quase mendigando patrocínio para a construção de uma máquina que transporta e beneficia recursos minerais, mote muito semelhante ao de “Um Homem de Sorte” (2018), do dinamarquês Bille August. Junto com ele veio também Lucille, sua irmã mais velha, como que para servir de superego, de freio moral — malgrado a relação dos dois passe longe do decoro. Thomas tanto faz que acaba por arrancar a estima de Edith, sentimento que consegue transformar num amor entre curioso e assustado por parte da americana, que acaba se casando com ele depois de perder o pai em circunstâncias violentas. Alan McMichael, desempenho surpreendente de Charlie Hunnam, também nutre sentimentos quase devocionais em relação à protagonista, mas reconhecerá a derrota, deixa para que Edith aceite Thomas como marido. Os dois, e mais Lucille, voltam juntos à Inglaterra, para morar em Allerdale Hall, a propriedade dos Sharpe, pouco mais que um imenso mausoléu que vai cedendo à lama carmesim do terreno onde fora construído.

Del Toro dispõe de referências óbvias de clássicos hitchcockianos do terror, a exemplo de “Interlúdio” (1946) e “Rebecca, a Mulher Inesquecível” (1940), a fim de contar a história de um casamento fadado ao malogro desde o princípio devido à influência de um elemento exógeno. O roteiro do diretor, partilhado com Matthew Robbins e Lucinda Coxon, descarrega sobre o espectador truques de câmera quase artesanais, o chacoalhar de um molho de chaves, o ranger de fechaduras centenárias para tornar essa atmosfera de estranhamento, de animosidade, ainda mais palpável. Diálogos precisos, em que se destacam os suculentos bifes, os monólogos quase intermináveis, quiçá sejam a marca que Guillermo Del Toro deseja evidenciar com ânsia maior em “A Colina Escarlate”, um filme inquestionavelmente moderno, que observa todos os deliciosos clichês do cinema à antiga. Inclusive no encerramento.


Filme: A Colina Escarlate
Direção: Guillermo Del Toro
Ano: 2015
Gêneros: Terror/Fantasia
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.