O filme fundamental da Netflix que você, provavelmente, não viu

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A violência da guerra ressuscita velhos anseios, por seu turno personificados na figura de mitos inesquecíveis da luta pelos direitos civis dos cidadãos afro-americanos. Esse é um dos argumentos de Spike Lee no soberbo épico “Destacamento Blood” (2020), um dos filmes mais imodestos de todos os tempos. Muhammad Ali (1942-2016), um dos maiores opositores da Guerra do Vietnã (1955-1975), abre o longa do diretor com uma de suas famosas diatribes contra o deslocamento de jovens americanos ao sudeste asiático a fim de tomar parte num conflito que, em essência, não lhes dizia respeito — o que no caso dos negros se agravava um tanto, porque, ao fim dos combates, voltavam para uma pátria que os hostilizava. Ali pagou caro a independência intelectual: o pugilista começou a ser boicotado em torneios nacionais e internacionais, caindo num ostracismo súbito e inesperado que lhe consumiu dinheiro e saúde, além do título dos pesos-pesados. Ao cabo de mais de duas horas e meia, Lee encerra seu filme lembrando Martin Luther King Jr. (1929-1968), o reverendo batista que alude ao poeta Langston Hughes (1901-1967), de “Let America Be America Again”, na fúria santa de que era acometido quando conclamava seus irmãos de cor a se engajar no movimento pela verdadeira libertação do povo negro na América. Nesse discurso, King proferiu suas últimas palavras, em 4 de abril de 1967, exatamente um ano antes de ser assassinado. Entre uma e outra sequência, muita crítica social embalada em sátira, piada com coisa séria — a desdita da guerra, inclusive —, comentários de cunho sociocultural e muita reflexão sobre os rumos que os Estados Unidos vem tomando quanto a deliberar, debater e (não) resolver o problema racial no país, da 13ª Emenda, promulgada em 1865 com o objetivo de abolir formalmente a escravidão, a George Floyd (1973-2020), o ex-segurança executado no meio da rua, diante de câmeras de celulares, por Derek Chauvin, um policial branco, hoje cumprindo pena de 22 anos por homicídio doloso. Negar os avanços da legislação, cada vez mais inclusiva e rigorosa, é pouco inteligente, mas não reconhecer que as conquistas dos Estados Unidos nesse particular ainda estão longe do ideal é má-fé ou oportunismo. É óbvia a homenagem de “Destacamento Blood” a produções fundamentais do cinema de guerra, a exemplo de “Apocalypse Now” (1979), dirigido por Francis Ford Coppola, mas o que não falta ao filme de Lee, como se imagina logo, é originalidade. O roteiro, do diretor, Kevin Willmott, Danny Bilson e Paul De Meo (1953-2018), faz referência a esses tempos trevosos da história americana, incluindo o resgate de uma carga de barras de ouro perdida nas selvas vietnamitas há quase cinquenta anos por cinco personagens, sendo que um já morreu, mas se manifesta de corpo presente assim mesmo. Eles têm uma vaga ideia de onde esteja o tesouro, mas encontram-na. Os conflitos que se desdobram daí, com o surgimento de outros aventureiros que também não abrem mão de levar a sua parte, não obstante sequer façam ideia dos horrores por trás de um conflito armado intercontinental que se arrastou por inacreditáveis duas décadas. Lee conduz a narrativa por essa subtrama, pontuando o curso de “Destacamento Blood” com menções históricas na voz de Hannah Hanói, a locutora de um programa de rádio fictício interpretada por Ngô Thanh Vân, que veicula canções de Marvin Gaye (1939-1984) a fim de encorajar os veteranos cansados de guerra, uma das deliciosas doidices sempre à espreita num filme com a grife do cineasta, como as vistas no também biográfico “Infiltrado na Klan” (2018).

O quarteto de protagonistas maduros segura galhardamente uma história densa e plena de movimento. Os desempenhos de Delroy Lindo, Clarke Peters, Isiah Whitlock Jr. e Norm Lewis se equivalem e se nivelam por cima, e chega a ser comovente a entrega de cada um, o quão empenhados se mostram a fim de levar à tela uma cena mais verossímil e impactante que a outra, coroadas pelo talento precocemente desaparecido de Chadwick Boseman (1976-2020) na pele e no espírito de Storming Norman, o espectro que dá uma força aos ex-colegas do pelotão de artilharia, jocosamente batizado como o título do filme. “Destacamento Blood” é, inquestionavelmente, outro dos grandes acertos de Spike Lee, que reserva guinadas narrativas nada previsíveis e impressionantemente emocionais — e nada piegas —, sobretudo num filme de guerra. Spike Lee é, sem nenhum favor, um gênio.


Filme: Destacamento Blood
Direção: Spike Lee
Ano: 2020
Gêneros: Guerra/Drama
Nota: 10/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.