Sombrio, violento e perturbador, filme da Netflix vai hipnotizar você por 136 minutos Loris T. Zambelli / Netflix

Sombrio, violento e perturbador, filme da Netflix vai hipnotizar você por 136 minutos

Embora valha-se de um roteiro assertivo, “Rede de Ódio” (2020) mais esconde do que mostra. Talvez um sintoma dos tempos nebulosos em que vivemos, em que a novilíngua contemporânea, à luz do que o escritor britânico George Orwell (1903-1950) expõe em “1984”, publicado em 1949, determina que notícia é detração e imaturidade é experiência.

O filme do diretor polonês Jan Komasa se aproxima com cuidado de um dos assuntos mais espinhosos do século 21, sem, contudo, se intimidar em nenhum momento. À medida que a história avança, o espectador vai conseguindo se infiltrar no pensamento turvo de Tomasz Giemza — um desempenho riquíssimo de Maciej Musiałowski, que com a sutileza que lhe é característica, vista também em “Soyer” (2018), oferece ao personagem toda a profundidade de que a composição necessita.

Giemza poderia ser comparado a vários outros tipos ardilosos do cinema, cujos talento para a retórica e um senso de percepção incomum ao resto dos mortais se prestam à oportunidade de mudar de vida. Como Frank Abagnale Jr., de “Prenda-me Se For Capaz” (2002), dirigido por Steven Spielberg, ou Tom Ripley, de “O Talentoso Ripley” (1999), de Anthony Minghella (1954-2008), baseado no antagonista da novela da autora americana Patricia Highsmith (1921-1995), publicada em 1955, o personagem de Musiałowski faz do completo desprezo pela moral — uma ideia burguesa, que serve muito bem às elites, que pode se dar ao luxo de pensar na fome do outro antes de levar um pedaço de pão à boca porque seu estômago dói de tão vazio — seu modo de viver, ou de sobreviver.

Komasa igualmente desfruta do argumento do uso deturpado da inteligência artificial — cada vez mais inteligente, ao passo que o homem, por sua vez, parece emburrecer a olhos vistos — a fim de fomentar a discussão sobre em que medida um indivíduo agressivo pode se dizer afetado pela toxicidade da internet ou se sua truculência é fruto de sua própria natureza patológica. O diretor explora essa dicotomia — logo resolvida, em face da superioridade da segunda hipótese — à luz de Giemza, que sai do interior da Polônia para a capital Varsóvia a fim de estudar direito, graças à generosidade de um casal de conhecidos, Zofia e Robert Krasucki, vividos por Danuta Stenka e Jacek Koman, que ele, espertamente, trata de chamar de tio e titia, apesar do feitiço logo se virar contra o feiticeiro, como se vê na sequência após o jantar que ele toma a liberdade de marcar na casa de seus mecenas a fim de agradecer a magnanimidade e a confiança — crédito de que não é mais merecedor, uma vez que fora expulso da faculdade de direito por ter entregado um trabalho que consistia numa mera compilação de vários artigos encontrados na internet.

O enredo deixa claro que Giemza não é simplesmente ambicioso, e a perspicácia do diretor aliada à atenção de Musialowicz a todos os meandros do personagem —  desde sua maneira de encarar seus interlocutores, sempre de baixo para cima, muitas vezes até com a cabeça meio oblíqua, denotando inferioridade, mas lembrando também uma fera prestes a dar o bote; ao modo de falar, ora mavioso, como se tentasse seduzir quem o ouve (a plateia, inclusive), ora disparado, quiçá obedecendo a um fluxo de raciocínio típico dos psicopatas —, testificam as intenções criminosas do protagonista. Giemza, conforme Zofia conclui com acerto, é doente, um sujeito cuja capacidade intelectual, como quase sempre acontece, supera a de quem o rodeia e que numa época como a que vivemos, das facilidades o seu tanto perigosas que as redes sociais proporcionam, se utiliza desse expediente para a propagação de notícias falsas, sem acatar a pruridos de consciência de nenhuma ordem, e tampouco observar possíveis propensões ideológicas, se é que algum dia as teve.

A suposta falta de originalidade da narrativa acaba se convertendo num trunfo para o filme, uma vez que o público sabe o que esperar da história, recebe exatamente aquilo porque ansiava e, por contraditório que possa parecer, se surpreende, dada a forma como cada aspecto da produção é apresentado. Fazendo de Giemza o mártir da causa que ele mesmo combatia, depois de elaborar um plano diabólico no intuito de sair por cima, ser reconhecido como um grande humanista e, talvez, recuperar a vaga na universidade de que fora escorraçado, a trama acata a noção do personagem-tipo, que representa um modelo de comportamento insensível a qualquer apelo exterior: Giemza é o sociopata que só ele conhece, tanto mais atormentado por nunca atingir seus objetivos escusos (malgrado ponha em risco a própria vida em muitas dessas empreitadas), e que dá vazão a seu lado bestial quando nota que nunca deixará a escória — isto é, sempre.

Não se deve deixar passar nada ao longo das 2h16 de duração de “Rede de Ódio”, que oferece uma mensagem edificante, sem ser — ou parecer — moralista: há que se estar sempre atento para os muitos Tomasz Giemza que nos apresenta a vida.