O suspense da Netflix que mostra que por trás de governos autoritários sempre há um genocídio em potencial

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Dona de uma carreira brilhante, Agnieszka Holland é mundialmente famosa graças a filmes que abusam da emoção do público ao apresentar, valendo-se da História, tramas envolventes, de dramaticidade carregada, como os ótimos “Europa, Europa” (1990) e “In Darkness” (2011), sobre a barbárie nazista ao longo da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em que retrata o cotidiano dos habitantes de territórios de domínio alemão durante os confrontos. Com “A Sombra de Stálin” (2019), Holland ratifica seu propósito de apresentar um trabalho abertamente desafiador ao se debruçar sobre a vida de um jovem jornalista galês que se empenha em alertar as autoridades britânicas acerca do risco da iminente ascensão de Adolf Hitler (1889-1945), a partir de 1933, quando é eleito chanceler da Alemanha.

Gareth Jones (1905-1935), de um James Norton inspirado, parte para a União Soviética naquele mesmo ano no intuito de testemunhar o dia a dia na Ucrânia. Ao desembarcar no país, Jones se depara com nada menos que o Holodomor, o genocídio provocado por motivação sociopolítica que dizimou sua população, hecatombe antropológica que reportou numa série de artigos para o jornal “The Times”. Estima-se que só na Ucrânia quase quatro milhões de pessoas tenham morrido de inanição, o que, em se tratando de enredo é uma fonte inesgotável para Agnieszka Holland, ela própria uma sobrevivente do arbítrio dos poderosos. A cineasta chegou a ser encarcerada pelas forças de segurança da então Tchecoslováquia quando da Primavera de Praga, em 1968, e posteriormente foi obrigada pelo regime comunista a sair de sua Polônia natal.

“A Sombra de Stálin” se utiliza dessa ligação visceral entre diretora e roteiro para desenvolver o arco dramático central do filme. Assim como Holland, Jones também anseia por denunciar o horror que viu de tão perto, embora ninguém se interesse. Malgrado todas as evidências, nenhum membro do vasto corpo diplomático do Reino Unido lhe dá crédito e, pior: para todos eles o sucesso do primeiro-ministro alemão, por quem estaria obcecado, era simples inveja. O jornalista passa a sofrer uma perseguição implacável, até perder o emprego e resolver ir a Moscou entrevistar Josef Stálin (1878-1953), o tirano que mandou na União Soviética de 1922 até sua morte, 31 anos depois. Jones conseguira entrevistar Hitler em 1933 e estava certo de que as coisas se encaminhariam da mesma forma com o líder georgiano. Mas se enganara.

Ambicioso, Gareth Jones toma como a missão de sua vida descobrir os segredos de Stálin. Para ele, parece pouco lógico que a União Soviética esteja empenhando uma fortuna quanto a respaldar o avanço de Hitler na Europa, ao passo que o povo morre de fome em todas as jurisdições comandadas pelo déspota da Geórgia. O arco dramático em torno da figura de Jones se completa a partir do surgimento de Walter Duranty (1884-1957) e sua assistente, Ada Brooks, na história. Duranty, vivido por Peter Sarsgaard, se notabilizou por seu trabalho como correspondente do “The New York Times”, jornal em que publicava matérias confessadamente simpáticas a Stálin, tão convincentes que acabaram por lhe render o Prêmio Pulitzer, em 1932. Personagem fictícia, Brooks — de uma sub-aproveitada Vanessa Kirby — dá sustentação à loucura ególatra do veterano, o pulo do gato do enredo. Analisando-se as orgias nababescas que promove, se pode ter uma ideia do porquê da adesão incondicional de Duranty, cujo Pulitzer nunca foi revogado.

A abordagem do expediente jornalístico em “A Sombra de Stálin”, com a apresentação de repórteres cuja trajetória profissional se fundamenta na denúncia, agrega à trama. À luz do que acontece em produções a exemplo de “Todos os Homens do Presidente” (1976), dirigido por Alan J. Pakula, e “Spotlight: Segredos Revelados” (2015), de Tom McCarthy, a aura de mártir de Jones é explorada na medida, enaltecendo-se a bravura com que leva a cabo suas funções. Depois de um encontro, digamos, fortuito com William Randolph Hearst (1863-1951), magnata absoluto da imprensa até o fim da primeira metade do século 20, o cerco contra o repórter se fecha. Caçado pela polícia secreta soviética, Gareth Jones é encontrado morto em 12 de agosto de 1935, véspera de seu trigésimo aniversário. Com ele, sepultou-se também a figura do jornalista aventureiro, sempre rediviva de tempos em tempos — mormente nos mais sombrios.