O filme que é uma pequena obra-prima escondida no catálogo da Netflix

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Vários grupos minoritários foram (e continuam sendo) perseguidos ao longo da história. Entre os séculos 12 e 18, a Inquisição, uma excrescência da Igreja Católica Apostólica Romana, puniu com a morte os hereges — e em especial as hereges —, e deixou em seu rastro a morte de aproximadamente 100 mil mulheres cujo comportamento era tido como fora do padrão, inadequado, demoníaco. Grande parte das bruxas, como passaram a ser conhecidas, ardiam na fogueira, vivas, expiando seus supostos pecados à custa de um sacrifício que estigmatizava sua família e relegava ao opróbrio e ao esquecimento o nome que um dia usaram na Terra. A maior condescendência possível era poupar das chamas as que se assumiam discípulas e amantes do diabo, reservando-lhes a imolação por estrangulamento.

O absurdo da execução em massa dessas mulheres, um verdadeiro genocídio, vem à tona em “Silenciadas” (2020). A caça às bruxas, literal no filme do diretor argentino-francês Pablo Agüero, remete à intolerância para com as minorias ainda hoje, passados mais de 300 anos. Registros mostram que muitas das mulheres descritas como feiticeiras, logo anatematizadas e escrutinadas por padres e bispos, que reportavam suas particularidades nos livros que despachavam para Roma, eram pretas, judias ou mesmo cristãs marranas — judias e muçulmanas que em público observavam as práticas do cristianismo, mas que na intimidade continuavam em sua fé de origem — e homossexuais. Não por acaso, muitas vinham de famílias abastadas e tinham suas propriedades e bens devidamente catalogados e espoliados pela Igreja, o que se configurava num expediente certeiro quanto a manter seu domínio ideológico e expandir seu poder financeiro, os dois nas mãos dos homens. Movimentos de oxigenação filosófica como o humanismo e o iluminismo, que se baseavam justamente na difusão do pensamento racional em detrimento da doutrina religiosa, valorizando o direito à liberdade, à individualidade e à vida, ergueram uma barreira frente às monstruosidades do clero, mas a barbárie só cessou de todo quando do desabrochamento da Revolução Francesa, em 5 de maio de 1789.

Em “Silenciadas”, a eliminação do diferente resta incontestável. Na sociedade obscurantista do século 17, onde se fixa o enredo, mulheres eram o inimigo a ser extirpado. Símbolo maior da beleza da criação, da vida, mas também da perfídia e da depravação desde Eva, a mulher não tem medo de experimentar, de desejar o novo. Dedicando-se outra vez a narrar uma história de desajuste social gerado da interferência direta ou oblíqua da mulher, como em “Eva Não Dorme” (2015), sobre as contendas envolvendo o cadáver (!) da ex-primeira-dama argentina Evita Perón (1919-1952), Agüero, junto com a corroteirista Katell Guillou, apresenta a Espanha como um imenso feudo, em que o rei é mais prestigiado que o próprio Todo-poderoso. A Igreja deve obediência à Coroa, e não o contrário; Filipe III (1578-1621) é a encarnação de Deus no país e ai de quem o questione. Já no desfecho da trama, o padre Cristóbal, um dos membros da comitiva de inquisidores que aporta no País Basco a fim de averiguar a prática de rituais profanos, deixa escapar seu desejo por mais autonomia, mas é contido pelo conselheiro Rostegui, cada um reivindicando a autoridade que imagina ser-lhe merecida. O texto de Agüero e Guillou, muito bem fundamentado no livro “A Feiticeira” (1862), do historiador francês Jules Michelet (1798-1874), faz questão de deixar claro a força da nobreza sobre a religião, que para ter alguma chance de sobreviver, tinha de bater-se contra outro adversário. 

Pablo Agüero se revela um diretor cuidadoso ao desdobrar as razões pelas quais jovens como Ana, a líder das acusadas de bruxaria, eram caçadas. Ana é uma moça comum, mas sua beleza e independência num mundo machista e tacanho atormentam o espírito daquele tempo sombrio. Na sequência do passeio de Ana e suas amigas pela floresta, se dirime qualquer hesitação: as garotas são donas dos próprios narizes, não temem julgamento de quem quer seja e, por isso, falam tão abertamente sobre o envolvimento romântico e a sexualidade, temas muito mais velados àquela época, por óbvio.

A imagem da maga que voa, com vassoura ou sem ela, é lembrada nas cenas finais de “Silenciadas”, bem como a associação entre o misticismo pagão e o fogo. Bruxas se valem do fogo para ativar suas poções e no mesmo fogo são caladas, sucumbindo à ignorância do meio truculento e hipócrita que não as entende e, destarte, não é capaz de absorvê-las — nem absolvê-las, malgrado o único delito que possam ter cometido fosse de o viver. E o de se sentirem vivas.