Máscaras que atravessam séculos: a influência da Commedia dell’arte no teatro ocidental Foto / Christian Bertrand

Máscaras que atravessam séculos: a influência da Commedia dell’arte no teatro ocidental

A importância da Commedia dell’arte para o Teatro Ocidental não pode ser medida por linhas cronológicas ou pela frieza das genealogias dramáticas. Não se trata de dizer que ela “influenciou”, como quem traça setas entre séculos. Trata-se de reconhecer que ela fundou um espírito — volátil, insolente, irreverente — que nunca mais deixou o palco. Uma centelha popular, grotesca, suada, que sobreviveu a palácios, a salões franceses, a reformas burguesas, e que hoje ainda pisca, nos cantos mais improváveis da dramaturgia contemporânea. Há algo da Commedia em qualquer ator que se entrega ao corpo, ao exagero do gesto, à liberdade do improviso. E há algo dela em cada espectador que ri não da piada em si, mas do abismo entre o que se pretende e o que se é. Rimos disso — da máscara que cai.

A Commedia dell’arte nasceu na rua e sobreviveu nos becos. Inventada no século 16 por trupes errantes italianas, deu forma ao desejo incontrolável de rir do poder. Do patrão, do juiz, do padre, da ordem toda. A estrutura era simples: tipos fixos, máscaras características, tramas repetidas. Mas dentro dessa simplicidade, uma energia viva: o improviso, a pulsação do instante. Arlecchino com sua esperteza acrobática, Pantalone e sua avareza cômica, Colombina, aguda e sagaz — personagens que pareciam sempre prestes a escapar do papel, a zombar do próprio autor. Não havia texto fixo: apenas um canovaccio, um roteiro esquelético, e a liberdade absoluta de reinventar o enredo noite após noite. Talvez tenha sido essa confiança no caos — e no ator como centro do universo — que a tornou tão insuportável para os reformadores. A arte institucional detesta o improviso. O Estado, mais ainda.

E no entanto, foi ela quem ensinou ao Ocidente uma verdade essencial: o riso é mais antigo que a estética. E mais necessário. Antes de qualquer noção de “personagem complexa”, “arco dramático” ou “tragédia moderna”, a Commedia já entendia que o corpo caindo no palco, o tapa maldado, o engano revelado — tudo isso era teatro. Não um teatro ilustrativo, mas visceral. E político. Porque rir, ali, era rir do mundo como ele se apresenta: ridículo, desigual, injusto, mas ainda assim habitável. Ela não oferecia redenção. Oferecia um espelho cômico, distorcido e cruel, no qual o espectador reconhecia, com um leve desconforto, sua própria máscara social.

Ao longo dos séculos, esse espírito sobreviveu de formas variadas — algumas nobres, outras disfarçadas. Está em Molière, claro, que transformou os tipos italianos em arquétipos franceses, com todo o verniz da corte. Está em Shakespeare, que emprestou de Arlecchino o motor caótico que move tantos de seus bobos. Está em Brecht, que aprendeu com os improvisadores que o riso pode ensinar. E está, curiosamente, nos palcos de hoje — mesmo nos mais sérios — onde o ator, por vezes, deixa vazar uma piscadela ao público, como quem diz: “Sim, eu sei. Isto é apenas teatro”. Essa consciência dupla — estar na cena e fora dela — é herança direta da Commedia.

Mas há algo mais profundo — e talvez mais triste — nesse legado. Porque a Commedia dell’arte também carrega em si a memória de uma perda: a perda do corpo livre no palco. Com o advento dos teatros fechados, das dramaturgias regidas pelo texto, da ilusão de realismo, o ator foi sendo gradualmente domesticado. Perdeu-se o suor, o improviso, o risco. Ganhou-se, em troca, o controle, a beleza, o refinamento. Mas há, nesse processo, uma melancolia. Como se o teatro tivesse esquecido que nasceu do gesto, do tropeço, da gargalhada suja. Que antes de existir como arte, ele existia como jogo — um jogo perigoso, entre o que se diz e o que se esconde.

Por isso, falar da Commedia dell’arte hoje não é apenas lembrar de um gênero teatral antigo. É lembrar de uma atitude diante do mundo: zombeteira, insolente, física. Em tempos de algoritmos e performances higienizadas, essa herança tem um gosto quase subversivo. E talvez seja esse o seu maior valor: o de nos lembrar que o teatro, quando é verdadeiramente vivo, se parece mais com uma feira desordenada do que com uma catedral. Que a beleza pode nascer do erro. Que a farsa, em certas horas, diz mais que a tragédia.

Assim, enquanto existirem atores dispostos a errar em cena, a cair de propósito, a fazer do próprio corpo um manifesto, a Commedia dell’arte continuará viva. Não como reprodução folclórica de suas formas, mas como pulsação subterrânea de sua liberdade. Ela é, no fundo, o lado escuro e vibrante do teatro: aquele que não pede licença, que não se explica, que não deseja agradar. E é por isso que importa — não por ter fundado uma tradição, mas por continuar a perturbá-la.

Carlos Willian Leite

Jornalista especializado em jornalismo cultural e enojornalismo, com foco na análise técnica de vinhos e na cobertura do mercado editorial e audiovisual, especialmente plataformas de streaming. É sócio da Eureka Comunicação, agência de gestão de crises e planejamento estratégico em redes sociais, e fundador da Bula Livros, dedicada à publicação de obras literárias contemporâneas e clássicas.