Nelson Rodrigues: o grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota

Nelson Rodrigues: o grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota

Nelson Rodrigues diz que Marx era uma besta e o biquíni é a degradação da nudez — Foto Reprodução / Revista Continente

Nelson Falcão Rodrigues (1912-1980), mistura do britânico Shakespeare (1564-1616) e do norueguês Henrik Ibsen (1828-1906) com o russo Anton Tchékhov (1860-1904), era desses dramaturgos (e cronistas) que buscam ver o homem de maneira integral. Da mixagem, com o cadinho individual, nasceu um teatrólogo genial — com identidade brasileira e universal.

O teatro e a crônica de Nelson Rodrigues são uma ressonância magnética da alma humana. Sua arte desnuda o homem — não só o rico (visto por parte da literatura patropi como cruel e pançudo), não só o de classe de média e não só o pobre. Daí certo desagrado de alguns com os “excessos” de sua arte. Apreciamos a arte degradar aquilo que não somos, ou ao menos achamos que não somos. Nelson Rodrigues pegava todo mundo, ninguém lhe escapava. A classe média é uma de suas, digamos, “vítimas” preferenciais. Porque, embora moralista ao extremo, não é tão diferente dos pobres e dos ricos (aliás, pobres e ricos têm uma moralidade similar, mais flexível do que a da classe média).

A classe média é assim: ama as aparências e, portanto, esconde o que se passa entre quatro paredes — daí lota os consultórios de psiquiatras e psicanalistas (outras quatro paredes). Sua ansiedade é que quer ser o que não é, ou, na prática, o que não existe — o ser humano maravilhoso que não existe nem nos contos de fada. A média é a classe que tem vergonha de tudo — embora seja tão desavergonhada quanto as demais (por isso faz quase tudo escondido) — e condena, com extremo rigor, a “imoralidade” alheia.

O teatrólogo mais acariocado de Recife abriu não seu saco de maldades contra a classe média — só a expôs, não com crueldade, e sim com realismo extremo. Apreciamos o autor de “Vestido de Noiva”, ainda que escandalizados, porque seu teatro trata de nós, e não de figuras imaginárias. A arte é o espelho que exacerba a realidade, não para nos assustar, e sim para que entendamos que somos às vezes piores e às vezes melhores do que imaginamos. “Olha você no palco, seu gaiato!”, parece nos dizer, exclamando, mas sem gritar, o criador de “Bonitinha, Mas Ordinária”.

Nelson Rodrigues, dramaturgo: “O que abomino é o jovem idiota, uma das figuras mais sinistras da nossa época”

Nelson Rodrigues, com sua arte, é aquele menino esperto e peralta que, envergonhando os pais, diz aos estranhos que são feios, que têm dentes estragados e narizes tortos. Nós, hienas celestiais, rimos, e até gargalhamos dos relatos. Mas estamos rindo de nós mesmos. O que o dramaturgo parece sugerir é: a vida de qualquer um, se examinada de perto, se ampliados os defeitos, pode render um — bom — escândalo. De perto, alertou Caetano Veloso, ninguém é normal (“Se cada um soubesse o que o outro faz dentro de quatro paredes, ninguém se cumprimentava” e “Só o cinismo redime um casamento. É preciso muito cinismo para que um casal chegue às bodas de prata” — são aforismos impagáveis do autor “O Beijo no Asfalto]”). Nelson Rodrigues nos diz isto — rindo, quem sabe. Como ele morreu, as peças e as crônicas riem de nós, como se tivessem vida própria, independentemente do criador.

Perto de nós, a duzentos metros ou dois quilômetros, tem homens espancando e matando mulheres. Homens que quase todos avaliam como “normais” no dia a dia. Mas matam mulheres, que tratam como “suas” — como se alguém fosse dono de alguém. Por que matam? Porque se julgam impunes? Talvez não mais. É provável que a nova mulher, se nova é, assusta os homens, alguns ou talvez muitos deles. O que elas querem? Ser tratadas com dignidade, respeito e ter prazer. O prazer das mulheres — livre — parece, além de assustar, indignar certos homens. Pois Nelson Rodrigues mostra, sem tirar nem pôr, a desgraceira que os seres humanos fazem. Sem dó nem piedade — que é a porta do céu para todo artista, de Homero, passando por Shakespeare e Proust, até chegar em Machado de Assis e Nelson Rodrigues.

O reacionário patropi e a Rússia “libertária”

A revista “Veja” (“Páginas Amarelas”) publicou uma espetacular entrevista de Nelson Rodrigues, na edição de 4 de julho de 1969. Luiz Fernando Mercadante, jornalista notável, foi escalado para “puxar” a língua do autor de “Álbum de Família”. Puxou tanto, e tão bem, que quase a arrancou. A conversa está no livro “A História é Amarela — Uma Antologia de 50 Entrevistas da Mais Prestigiosa Seção da Imprensa Brasileira” (Abril, 326 páginas).

Na apresentação, Mercadante conta que Nelson Rodrigues orgulhava-se de “ser lido por mais de 70% dos militares que leem ‘O Globo’ e por mais de 60% dos leitores dos jornais em que escreve”. O faz-tudo contou ao repórter que nunca havia saído do Brasil, “pois no Méier já começa a sentir saudade”.

Mercadante começa perguntando “Quem é você, Nelson Rodrigues?” O pai de “Viúva, Porém Honesta” reage como, por assim dizer, escritor: “Eu sou um pierrô, sou um romântico. Mas o romântico piegas. E aí me veio essa vergonha de ser romântico e uma certa tendência para negar essa emotividade fácil e vagamente burlesca”. Talvez seja uma declaração de que, embora pareça um filho da Velha Albion, quem está falando é mesmo um brasileiro. Não um fleumático britânico ou um sisudo alemão.

Inquirido se é obsessivo, Nelson Rodrigues admite: “Eu sou uma flor de obsessão”. Uma mulher, a brilhante Camille Paglia, disse que a existência de Mozart e Beethoven como compositores de primeira linha se deve ao caráter obsessivo da dupla. As mulheres seriam menos obsessivas, postula a scholar americana, uma discípula rebelde de Harold Bloom.

O dramaturgo e escritor (era, sim, romancista… quase tão bom quanto João Antônio, ah, nos contos), indagado se é reacionário, apresenta-se de maneira, vá lá, deliciosa: “Na televisão, sempre que me lembro, eu digo que sou reacionário, só para chatear”. Um poseur? Ma non tropo.

Depois, ante a insistência do repórter, filosofa e historia: “Se a Rússia — onde não existe o direito de greve, onde uma vez o Stálin, de uma só cajadada, matou 12 milhões de camponeses de fome punitiva, onde toda a experiência socialista tem 100 milhões de mortos a pauladas —, se a Rússia se considera libertária, se acha que está trabalhando para o futuro, que é o futuro, então, nesse caso, eu sou reacionário, sou o passado, sou a Idade Média. E prefiro ser a Idade Média, pois a Rússia é a pré-Idade Média. E, então, assim mesmo, estou na frente da Rússia”.

Observe que Nelson Rodrigues disse isso 22 anos antes da extinção da União Soviética, ocorrida em 1991, com a queda de Mikhail Gorbachev e a ascensão de Boris Yeltsin. Antes também da abertura dos arquivos soviéticos. Hoje, com pesquisas exaustivas de vários historiadores, como Robert Service, Simon Sebag Montefiore, Moshe Lewin (autor de um livro ponderado e excelente sobre o período soviético), Orlando Figes, Timothy Snyder, Anne Applebaum, Angelo Segrillo, Marcel Novaes e Sheila Fitzpatrick, sabe-se que o sistema comunista de Stálin é responsável por cerca de 25 milhões a 30 milhões de mortes. Chegava-se a matar por cotas.

“Eu sou um ex-covarde e anticomunista”

O título da entrevista é “Eu sou um ex-covarde”. Mercadante quer saber por qual motivo a coluna de Nelson Rodrigues em “O Globo” passou a ser “política”. “Passei à ação política simplesmente porque deixei de ser covarde. Sou um ex-covarde.” Acossado pelo repórter, assinala: “Eu sou um anticomunista. Geralmente, o anticomunista diz que não é. Mas eu sou e o confesso”.

Nelson Rodrigues
Nelson Rodrigues, em 1979

O motivo de ser anticomunista: “A experiência comunista inventou a antipessoa, ou o anti-homem. (…) O comunismo inventou alguém que não é homem. Para o comunista, o que nós chamamos de dignidade é um preconceito burguês. Para o comunista, o pequeno-burguês é um idiota absoluto justamente porque tem escrúpulos”.

O polemista seria “hidrófobo”?, fustiga Mercadante. “Não, o comunismo é que é hidrófobo. Minha fúria é a de um homem que ama a liberdade. Eu sou um homem que põe a liberdade acima do pão”. Difícil discordar. Os que sacrificam a liberdade pela igualdade, ou suposta igualdade, como na União Soviética, não chegam ao paraíso — comunista ou qualquer outro —, e sim à ditadura. A aposta na igualdade é, no geral, uma estratégia para iludir e arrebanhar os inocentes-úteis de sempre — afinal, quem pode ficar contra os que defendem a igualdade? (quem fala em nome da igualdade, do bem comum, pode fazer tudo; até matar 30 milhões, como na União Soviética, e 70 milhões, como na China — e, conquistados, o porrete come e a liberdade é a primeira a ser excluída.

Padre de passeata, dom Hélder Câmara era criticado constantemente por Nelson Rodrigues. Na entrevista, não poderia ser diferente: “Dom Hélder é um cristão para quem não basta o cristianismo. É o cristão sem vida eterna. É o cristão marxista. É o cristão sem sobrenatural. Esqueceu tanto a letra do Hino Nacional como a do Padre-Nosso e da Ave-Maria. É, portanto, um falsário. (…) Ele não abandona a batina porque não pode usar terno, não pode ser almofadinha, não pode ser um janota, porque nem um cachorro vira-lata o acompanhará. Dom Hélder de terno será líder de coisa nenhuma”. Bate muito mais, mas a síntese é suficiente.

A Igreja Católica, na opinião de Nelson Rodrigues, está ameaçada “pelos padres de passeata, pelas freiras de minissaia. Hoje, qualquer coroinha contesta o papa”. Hoje, sublinho, tem a ver com meio século atrás. O papa Francisco, com quem possivelmente o escritor não simpatizaria de maneira ampla, está sendo contestado por aqueles — bispos e cardeais — que não querem uma “atualização rápida” da Igreja Católica. O objetivo do religioso, homem do sistema, não é mudar as bases da Igreja Católica, mas torná-la contemporânea. Até para não continuar perdendo clientela para os grupos evangélicos.

Gustavo Corção e Tristão de Athayde

Gustavo Corção (1896-1978) é um pensador católico e escritor (“Lições do Abismo”) que começa a ser reconsiderado por alguns leitores, mas não entra nos cânones. Da Wikipédia, extraio um comentário da escritora Rachel de Queiroz: “A maioria dos brasileiros conhece duas faces de Gustavo Corção. Uma, a do escritor exímio, a usar como ninguém a língua portuguesa, o autor que é um indiscutível clássico da literatura nacional. […] A segunda face é a do anjo combatente, de gládio na mão, a castigar os impostores que vivem a gritar o nome de Deus e da Sua Igreja, não para os louvar, antes para apregoar na feira inocente-útil do ‘progressismo’”. Tristão de Athayde-Alceu de Amoroso Lima disse: “Era o único escritor da literatura moderna, na linha de Machado de Assis. Era um límpido machadiano. Tinha o que se chama de ‘senso de humor’, à inglesa”.

Tristão de Athayde: “Era o único escritor da literatura moderna, na linha de Machado de Assis. Era um límpido machadiano. Tinha o que se chama de ‘senso de humor’, à inglesa”

Embora não seja ruim, Gustavo Corção não está à altura de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Pertence ao segundo time… de qualidade, aceitemos. Ressalvo, porém, que não sou especialista em sua obra. Mas ponho um pé, o esquerdo ou o direito, atrás quanto às avaliações de amigos como Rachel de Queiroz e Tristão de Athayde. Nelson Rodrigues, na entrevista, corrobora os dois “críticos”: “Ele [Corção] é uma das inteligências mais sérias do Brasil. As esquerdas dizem que ‘ele é uma besta’ e gostariam muito que ele o fosse. Até os seus piores inimigos sabem que ele é um homem muito inteligente”. Observe que o dramaturgo não avalia sua obra literária e ensaística. A impressão que se tem é que, na falta de autores de direita, para colocá-los em confronto com autores de esquerda — no Brasil quase todo mundo posa de esquerda, mesmo quem não é —, é preciso reforçar a posição de Gustavo Corção como grande escritor.

Alceu de Amoroso Lima leva um cacete federal de Nelson Rodrigues, porque, depois de articular inclusive com a direita integralista, passou a flertar com a esquerda. “O doutor Alceu é um cego que não quer ver, um homem que desviou sua inteligência para cortejar a juventude.” É só um trecho da crítica contundente e corrosiva.

Cartaz de Lênin contradiz o “é proibido proibir”

Mercadante quer saber se Nelson Rodrigues “abomina a juventude”. A resposta é prosaica e, ao mesmo tempo, até sociológica: “Não, eu amo a juventude. O que abomino é o jovem idiota, uma das figuras mais sinistras da nossa época [década de 1960]. (…) O jovem pode ser um pulha, um santo, um herói, um covarde. A impostura mais sinistra do século 20 é o Poder Jovem. De repente, os mais velhos passaram a ver os jovens como o certo, o histórico, o sábio, o clarividente. O fato de um imbecil ter 17 anos transformou-se em um mérito formidável. O sujeito passou a ser seguido e respeitado, não por ter tais ou quais méritos, mas por ter nascido em 1952. (…) De repente, sábios, filósofos, psicólogos, psicanalistas começaram a achar que porque o sujeito nasceu em 1952 passava a ter todos os direitos e nenhum dever. Os mais velhos instalaram no jovem idiota um processo de paranoia: ‘O doutor Alceu e dom Helder estão dizendo que eu sou a história, que o mundo é meu, que eu não preciso aprender nada porque já sei tudo, porque nasci em 1952 e portanto sou formidável’. (…) Uma juventude tão inepta [na França] que escrevia nas paredes: ‘É proibido proibir’ e carregava cartazes de Lênin, Mao, Guevara e Fidel, autores das proibições mais brutais. Era a imaturidade erigida em virtude formidabilíssima, era o Poder Jovem que é o próprio culto à imaturidade. (…) O bom, a figura estimulante, é o ex-jovem. E não o jovem basbaque, erigido em poder pelas esquerdas”. Não mudou em 49 anos: hoje, apesar de se conhecer a história da esquerda no século 20, é possível ouvir jovens ricos enaltecendo Guilherme Boulos, estranhamente apresentado como “democrata”. São parentes suicidas dos jovens ricos que idolatravam Fidel Castro em Cuba e, com a revolução radicalizada, tiveram de cair fora, para Miami, ou foram presos e, até, mortos.

Para Nelson Rodrigues, “o esquerdista é o maior moedeiro falso de todos os tempos”.

Açulado para falar sobre os Estados Unidos, Nelson Rodrigues não se faz de rogado: “Os Estados Unidos são o ganha-pão das nossas esquerdas. Se os Estados Unidos acabassem, acabariam automaticamente as nossas esquerdas por falta de assunto. Os Estados Unidos são um grande país, o país mais livre do mundo. Imagine só que lá a televisão já andou passando um filme intitulado ‘As Atrocidades Americanas no Vietnã’”. Curiosa ou sintomaticamente, o autor de “Senhora dos Afogados” defendia a ditadura patropi, que, em 1969, com o AI-5 nas mãos, era cruenta.

Pelo menos o escritor era um anticomunista assumido e não fez como a família Marinho, que, dirigente do Grupo Globo, pediu “perdão” por ter apoiado a dita-quase-sempre-dura civil-militar. Anos depois dos governos dos generais. Se os Marinhos tivessem rompido com a dita-quase-nunca-branda entre 1968 e 1974, aí, sim, seriam admiráveis. Se vivo, com sua verve ferina, certamente Nelson Rodrigues diria: “Pelo visto, ninguém apoiou a ditadura — só eu”. Ressalte-se que era empregado de “O Globo”. Em 1969, tempo de combate feroz entre guerrilheiros e militares, não se sabia quem mais amava os governos dos generais: se Nelson Rodrigues, quiçá cínico, ou Roberto Marinho, quem sabe misto de epicurista e cínico. Esquerdista, um filho do dramaturgo foi torturado pelo regime militar.

“O biquíni é a degradação da nudez”

Ao contrário de certos intelectuais — desses que hoje vivem grudados na televisão, assistindo séries, que nada mais são do que novelas encurtadas —, Nelson Rodrigues gostava dos programas televisuais. Irônico ou não, disse à revista: “Eu gosto do mau gosto da TV. A pior televisão do mundo é a inglesa, com aquela mania cultural. A TV tem de ser feita para as massas, e as massas são burras e têm mau gosto e não têm nada que ver com a grande arte, com a grande música, com a grande pintura. Se ela é feita para as massas, tem de ter o nível das massas. Evidentemente, você não vai investir bilhões numa TV para que o Proust diga: ‘Está ótimo. Tem bom gosto’”.

Nelson Rodrigues
Nelson Rodrigues, um dos maiores cronistas de jornal no Brasil, foi uma das estrelas de “O Globo”

Conservador, Nelson Rodrigues era crítico do biquíni. “O biquíni é a degradação da nudez. A nudez, para que tenha um valor plástico, exige o desejo. A nudez exige o amor. A nudez sem o desejo e, pior ainda, a nudez sem o amor é o que há de mais feio.” O repórter contrapõe: “Mas a culpa é do biquíni?” O arguto observador dos costumes replica: “Não, a culpa é da burrice suicida das mulheres que o usam. No tempo em que a nudez tinha mistérios, tinha suspense, era um dos mais altos bens da mulher. Mesmo a mulher mais destituída de encantos tinha essa nudez latente debaixo do vestido. E isso era fascinante. (…) O biquíni acabou com esse encanto”.

Sublinhe-se: o dramaturgo é pré-internet. A internet escancarou tanto a nudez e o sexo que chegou a “matar” a “Playboy” brasileira. A mulher que Nelson Rodrigues parece almejar (colocar num pedestal), nostálgica e, até, poeticamente, não existe mais e, mesmo se acreditando em eterno retorno, talvez não venha a re-existir algum dia. Mas o escritor não teria alguma razão? É provável, mas a palavra a reter é “alguma”… Não dá para escrever “toda”.

Tido como introdutor do palavrão no teatro — “fui homenageado como tal” —, Nelson Rodrigues pontua que “dava ao palavrão uma função dramática. Depois veio o palavrão pelo palavrão, pelo prazer do palavrão”.

Como um escritor tão escrachado, com uma linguagem erótica tão poderosa, pode ser tão conservador e, inclusive, carola? A explicação está na sensacional biografia “O Anjo Pornográfico — A Vida de Nelson Rodrigues”, de Ruy Castro. O jornalista explicita a contradição de um anjo que, igualmente, era, quando escrevia, demônio. Sua arte era Lúcifer (volúpia) e o homem, anjo (contenção). Pelo menos queria ser angelical e, de certo modo, era mesmo. Dada sua linguagem poderosa, ofensiva aos “bons costumes” e à moralidade de porta de igreja, o autor de “Perdoa-me Por Me Traíres” chegou a ser perseguido pelos censores. “Eu tive sete interdições, e ninguém se manifestou a meu favor. A direita, o centro e a esquerda estavam, então, contra o palavrão e a favor da interdição. Fui, durante anos, o único autor obsceno do teatro brasileiro. Os esquerdistas me chamavam de tarado”.

A questão-chave é: ainda que conservador, em termos políticos, Nelson Rodrigues era revolucionário como criador artístico. Não à toa Anthony Burgess, autor do romance “Laranja Mecânica” e crítico literário, escreveu que os grandes revolucionários da “forma”, os escritores inventivos, são (ou foram) quase todos, politicamente, conservadores.

Há quem aposte que cinema é entretenimento para adolescentes que os intelectuais transformaram em sétima arte para assistirem filmes, a rodo, sem passar vergonha. Nelson Rodrigues não discorda: “Cinema é subarte”. O crítico de cinema Lisandro Nogueira, que equipara Stanley Kubrick e Jean-Luc Godard (e, quem sabe, Claude Chabrol) a Proust, Claude Simon (dos franceses, depois de Stendhal, Flaubert, Proust e Gide, é o mais apreciável) e Joyce, talvez concorde com um comentário de Nelson Rodrigues: “Nem sei se o Cinema Novo tem coerência ou a unidade de um movimento orgânico”. A Víbora 2 (a 1ª é o jornalista Joel Silveira) sugere que o diretor (e autor?) Glauber Rocha era maior do que o Cinema Novo.

“O Brasil sempre teve um tom de catástrofe”

Mercadante conclui a entrevista com a pergunta “e o Brasil, Nelson, o Brasil vai bem?”. O dramaturgo apresenta sua leitura: “O Brasil sempre teve um tom de catástrofe, de quinto ato de uma tragédia bravíssima. Os militares estão fazendo uma experiência. Tomaram o poder e esse poder lhes foi imposto pela inépcia, pela burrice, pela imbecilidade das esquerdas. As esquerdas fizeram tudo isso e colocaram as Forças Armadas na obrigação elementar de intervir sumariamente porque o Brasil de Jango foi o Brasil do caos, do caos mais idiota, mais estéril, mais infecundo, que não conduziria a nada a não ser ao próprio caos. Os militares tiveram de intervir para que o Brasil não virasse uma China de Pearl Buck, uma China subliterária, onde todo homem é um animal político. Todo homem, menos os militares?, pergunto eu. O militar é um brasileiro digno como qualquer outro. Têm direito à vida política eles também. E eu me recuso a acreditar na incompetência dos militares. Eles estão devolvendo o juízo ao Brasil”.

Karl Marx
O filósofo e economista alemão Karl Marx era visto como uma “boa besta” pelo dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues

Penso como Nelson Rodrigues: os militares, e exatamente por causa da ditadura civil-militar — os civis querem descolar e dizem que a ditadura foi apenas militar, esquecendo-se das ações das vivandeiras, como Magalhães Pinto e Carlos Lacerda —, ficaram com má imagem. Mas há figuras extraordinárias nas Forças Armadas, como Ernesto Geisel, falecido em 1996, e Eduardo Villas Boas, atual comandante do Exército. Há intelectuais de primeira linha entre os militares, mas a mídia costuma tratá-los como bestas feras e ouve qualquer intelectual mediano da universidade como se fosse uma sumidade. Mas, como regimes autoritários (nem precisam ser totalitários) não me entusiasmam — nenhum me interessa, pois considero que a melhor ditadura é pior do que a mais frágil e caótica das democracias —, fico com as palavras de Geisel, quando inquirido por um pesquisador sobre por qual motivo havia “matado” a ditadura: “Porque era uma bagunça”. A ordem aparente pode esconder, como percebeu o presidente-general, um caos poderoso e paralisante.

Não está na entrevista da “Veja”, mas recolho trecho de uma entrevista do dramaturgo ao escritor Otto Lara Resende (que escrevia de maneira mais refinada do que o dramaturgo, mas não tinha o mesmo talento): “Nelson, quais seriam as suas últimas palavras?” O autor de “Toda Nudez Será Castigada” redarguiu: “Que boa besta era o Marx!”