“Trapaceiras” parece nascer do impulso de revelar o quanto o glamour do embuste depende menos de planos engenhosos e mais da capacidade de observar as brechas humanas. Josephine, vivida por Anne Hathaway, surge como alguém que domina esse ofício com elegância quase ofensiva: ela conhece os ambientes que frequenta, mede cada interlocutor e adapta suas máscaras com precisão estudada. Já Penny, interpretada por Rebel Wilson, opera na outra ponta desse espectro. Ela finge confiança para compensar improvisos desastrosos, mas possui um instinto agudo para detectar vulnerabilidades alheias. Quando essas duas figuras colidem, o filme abandona a ideia de parceria cordial e investe no atrito como motor narrativo. A rivalidade nasce de diferenças de método, mas é alimentada pelo desejo de reconhecimento.
Essa tensão permite observar como cada trambique funciona como resposta a um mundo que recompensa quem manipula melhor os códigos sociais. Ao colocar Josephine como a especialista sofisticada e Penny como a autodidata irreverente, o roteiro expõe o contraste entre refinamento adquirido e esperteza visceral. Essa oposição não é apenas cômica: ela revela que o exercício do poder, mesmo em escala pequena, raramente é neutro. A figura masculina escolhida como alvo, Thomas, o jovem desenvolvedor vivido por Alex Sharp, funciona menos como personagem e mais como espelho do sistema que as duas tentam dominar.
Disputa, performance e fragilidades expostas
Quando Josephine e Penny decidem transformar Thomas no campo de batalha, o filme assume a estrutura clássica do duelo, mas supera a simplicidade dessa forma ao explorar a necessidade que ambas têm de validar seus métodos. Josephine aposta em um verniz aristocrático para convencer vítimas a confiar nela; Penny simula fragilidade ou inocência com um descaramento que, paradoxalmente, exige coragem. A sequência em que Penny finge ser cega para testar os limites de Thomas e enfrentar as provocações de Josephine sintetiza o espírito da narrativa: uma sátira sobre a maneira como homens subestimam mulheres e, ao mesmo tempo, sobre como mulheres também se enganam ao imaginar que a trapaça sempre será suficiente.
Essa disputa revela algo mais profundo: nenhuma das duas domina completamente o jogo que tenta conduzir. Josephine, apesar da postura altiva, reage com ansiedade quando percebe que seus truques já não produzem o impacto desejado. Penny, mesmo confiante, demonstra cansaço diante da exigência constante de performar esperteza. O humor do filme nasce desse encontro entre ambição e frustração.
O contraponto oferecido por Thomas adiciona outra camada. Ele aparenta ingenuidade, mas suas reações sugerem que compreende mais do que demonstra. A dinâmica entre o trio convoca uma pergunta incômoda: quando todos mentem, quem realmente assume o controle?
O espelho social por trás da comédia
O interesse maior de “Trapaceiras” não está apenas no riso imediato, e sim na forma como ele expõe pequenas estruturas de dominação que se infiltram nas relações cotidianas. A insistência das protagonistas em vencer uma à outra funciona como comentário sobre a competição constante estimulada por ambientes onde aparência vale mais que substância. O filme recicla a premissa de “Os Safados”(1988), mas se distancia do original ao enfatizar como mulheres que dominam o jogo da trapaça precisam, antes de tudo, sobreviver às expectativas impostas a elas.
O humor irregular e alguns atalhos narrativos não impedem o longa de tocar em questões mais amplas: a disputa por legitimidade, a pressão por desempenho, a necessidade de reinvenção permanente. Mesmo quando a narrativa não alcança todo o potencial que promete, há vigor suficiente nas interpretações de Anne Hathaway e Rebel Wilson para sustentar a provocação central.
A última reviravolta confirma que, nesse universo, ninguém é tão frágil quanto parece nem tão brilhante quanto gostaria. A trapaça funciona como linguagem comum, mas também como sintoma de um sistema que recompensa o disfarce mais convincente. É justamente essa constatação que mantém o filme ecoando depois que a comédia termina: não pelo riso, mas pelo desconforto silencioso de perceber que, fora da tela, o jogo raramente é tão diferente.
★★★★★★★★★★





