Fazia uma fresca manhã de outono. Estacionaram os idosos em cadeiras de rodas para o tradicional banho de sol. Fazia bem para os ossos. E para o ócio. Mais ignorantes do que a média feminina, os homens quase sempre morriam primeiro. De tal sorte que havia muito mais velhas do que velhos naquele abrigo. Alheios ao mulherio, dois internos conversavam, sob algum grau de incompreensão mútua, tendo em vista que ambos estavam praticamente surdos como uma porta.
— Adoro esse jardim.
— Nada mau.
— Sempre gostei desse contato com a natureza, sabe?
Faz um bem danado para a alma da gente.
— É um bom jardim, Stan. Mas não tem nada a ver com alma. Almas não existem.
— Hein?
— Ficou surdo, Stan? Não sou gravador para ficar repetindo as coisas.
— No duro que você não acredita que em alma, Joe?
— Morreu, acabou.
— Morreu, acabou… — repetiu, estupefato.
— Igual às flores do nosso adorável jardim — comentou arrebatado pelo cinismo.
— Deve ser duro chegar nessa fase da vida e…
— Que fase, Stan? De qual fase da vida você está falando?
— Da velhice, ora e essa.
— Entendi. Continue a palestra.
— Deve ser duro chegar à velhice sem uma nesguinha sequer de fé na vida eterna. Estamos no fim da linha, Joe. Precisamos nos agarrar a alguma coisa.
— Já me agarrei a uma bigorna, Stan. E vamos afundar agarradinhos, pode crer.
— Você anda desiludido. Isso só piora as coisas.
— Fico com o pragmatismo das plantas.
— Como assim “Fico com o pragmatismo das plantas”?
— Preste atenção. A planta brota, cresce, floresce, frutifica, definha e morre. Simples assim, Stan.
— Simples assim…
— Exato, meu senil papagaio.
— Pois eu penso diferente de você, Joe. Acredito em alma, em eternidade e, ainda por cima, eu amo o nosso jardim florido.
— Cada macaco no seu galho.
— Há, contudo, que se tomar muito cuidado com o pólen.
— Não entendi. O que significa?
— A febre do feno. A maior parte das pessoas no hemisfério norte é alérgica ao pólen das árvores e das gramíneas.
— As plantas não têm culpa de nada, Stan. Aliás, prefiro elas a certos indivíduos alérgicos que andam por aí aporrinhando a vida da gente.
— Hoje você acordou azedo, hein?
— Igual ao maldito leite que nos serviram no desjejum.
— O leite estava azedo? Meus Deus! Tomei duas chávenas inteiras.
— Ainda bem que não sou seu colega de quarto, Stan. Não quero estar por perto quando as suas tripas começarem a gritar.
— Não diga isso, Joe.
— Um pouco mais de trabalho para as famigeradas fraldas geriátricas. Rá-rá-rá… Vai ser divertido.
— Seu velho desgraçado… — reclamou a sorrir.
— Não se pode lutar contra os esfíncteres e contra a natureza das coisas, meu caro. Estamos envelhecidos, lascados, com um pé na cova e outro na casca de banana.
Ambos gargalharam a ponto de quase cair das cadeiras.
— Você não presta, Joe. Mesmo sendo um pé no saco, você me mata de rir.
— Vamos morrer de qualquer forma. Que seja sorrindo.
— A sua família anda sumida. Faz um tempão que não os vejo.
— Toquei-os daqui, Stan. A minha família são vocês. E essas flores nefastas, repletas de pólen perigoso, que já vimos definhar e ressurgir sei lá quantas vezes. Se lembra quando você foi admitido aqui no exílio?
— No asilo, você quer dizer.
— Que seja. Exílio. Asilo. Hospício. É tudo a mesma coisa. Depósito de gente. Se lembra daquele dia, Stan?
— Huumm… Sei lá. Se não me falha a memória, tem uns sete anos ou mais.
— Sua memória não apenas está falhando, como te enganando, Stan. Mas não se preocupe. Deve ser o titio Alzheimer. Tem só dois anos que você foi admitido na casa, parceiro. Me lembro perfeitamente da sua cara de pateta quando lhe deixaram sozinho na recepção, sem saber o que dizer, sem saber o que sentir, com uma mão atrás e outra na frente, igual a maioria dos desgraçados que vem parar aqui. O seu semblante apalermado me conquistou desde o primeiro dia, sabia? Quando você entrou, eu já sabia exatamente o que fazer para não me sentir exilado, louco e fodido.
— Não diga isso, Joe. Não estamos exilados, loucos e fodidos. Somos muito bem cuidados pelos profissionais dessa casa.
— Estão apenas assistindo a gente se foder, Stan. Pode crer. Inclusive, deve existir uma bolsa de apostas para adivinhar quem vai bater as botas primeiro. Ouça bem, irmãozinho: eu tenho 98 anos. Eu venho do século passado, que nem aquela velha poetisa da casa da ponte. Entrei aqui no início dos anos zero-zero e até agora não tive a sorte de ser fulminado por uma pneumonia, por uma disenteria, por uma morte súbita do tipo sucumbir dormindo, se é que me entende. Nem a droga da pandemia do vírus chinês deu um jeito em mim, Stan. Já me sinto como um decrépito e vaidoso imortal da academia de letras.
— Santo Cristo, você está terrível hoje, Joe. Tá parecendo uma personagem do Ernest Hemingway.
— A vida imita a arte. Eu imito Hemingway, só que sem o tiro na cabeça. Até para me matar eu sou medíocre.
Uma das enfermeiras se aproximou da dupla de amigos.
— Bom dia, Joe.
— Bom dia, Susie. O que temos para hoje? Vai fazer mais uma obra de caridade para o amiguinho aqui?
— ele comentou colocando uma das mãos sobre a genitália combalida.
— Hoje não, Joe. Estou naqueles dias.
— Ensandecida?
— Ensandecida.
— Maldita menstruação.
— Tome. Beba os seus remédios.
— Não vou precisar mais de remédios, Susie. Eu vou morrer essa noite.
— Que história é essa, Joe?
— Estou te dizendo, Susie. Eu vou morrer essa noite.
— Não diga isso, Joe. Deus castiga, sabia?
— Deus não existe.
— Não adianta, Susie. Hoje ele está com a macaca. Insuportável. Quem sabe devesse morrer mesmo e parar de encher o saco da gente.
— É assim que eu gosto, Stan. Continue. Finalmente, você demonstra ter mais sangue do que drogas correndo nas suas veias.
— Tome logo as suas pílulas, Joe. Tenho mais o que fazer.
— Você manda, docinho.
Joe tomou os medicamentos. Na madrugada do dia seguinte, foi encontrado morto pela camareira. Ele finalmente sucumbira dormindo, de causas naturais, leve e suave como o feno. Durante o banho de sol, pegaram Stan chorando. A princípio, supuseram que fosse mais uma crise de rinite alérgica sazonal. Acontecia em todo outono. Mas eram lágrimas de saudade.


