Um frio tomava conta do ambiente. Havia um inverno fictício e neve cenográfica lá fora, mas não eram os aparelhos de ar-condicionado. O set respirava de maneira irregular, como se o hotel de “O Iluminado“ guardasse dentro de suas paredes uma tensão que já existia independentemente do roteiro. Stanley Kubrick transformou o cinema em uma experiência espiritual. Nada de descanso, nada de improviso. Centenas de ensaios não eram suficientes. Cada passo tinha que ser pensado. Cada olhar errado era reencenado. Cada tomada era desmontada e reerguida quantas vezes fosse necessário para alcançar aquilo que só Kubrick enxergava.
Nesse ambiente, Shelley Duvall caiu em exaustão. Meses de pressão constante colocaram sobre seu corpo a expressão do pânico que a câmera capturava com crueldade quase sádica. Kubrick atingia o extremo do assédio. Duvall perdeu os cabelos, sua saúde, e seu olhar passou a transmitir uma fragilidade que já não era mais ficção. Enquanto ela se desintegrava lentamente diante das lentes, a equipe técnica enfrentava suas próprias batalhas: refilmagens por semanas a fio, mudanças súbitas de iluminação, cenários reconstruídos repetidas vezes e o cansaço físico por operar equipamentos pesados em jornadas inacabáveis.
Apesar disso, o Overlook ia tomando forma. O hotel deixou de apenas existir: ele respirava. Pelas janelas, o inverno de mentirinha parecia mais real que o verdadeiro. A carpintaria ecoava, os longos corredores viraram labirintos claustrofóbicos e os tapetes laranjas deixavam o ambiente saturado com uma cor de febre. O elenco parecia entrar em um portal para dentro daquele espaço onde já não era mais possível separar o cenário do ruído mental.
A mão que segura o machado
É nesse cenário de obsessão que surge um dos símbolos mais emblemáticos da loucura que pairava sobre as filmagens. A cena em que Jack Torrance (Jack Nicholson) quebra a porta de madeira para chegar até Wendy exigia uma brutalidade que precisava ser realista. Kubrick queria não apenas o impacto material, mas o emocional. Ele queria o som do machado entrando na madeira, queria ver os músculos de Nicholson saltando para fora, queria o peso da fúria com ritmo irregular, quase animal. Nada de truques, nada de portas falsas, nem efeitos sonoros substituindo o real.
E Nicholson, já paranoico e obcecado, não apenas interpretava a violência: ele a executava. Anos antes de se tornar um dos rostos mais célebres do cinema, o ator havia sido bombeiro voluntário. O machado era um instrumento de trabalho que ele já havia manuseado diversas vezes. Quando as filmagens daquela cena começaram, ficou claro para todos da equipe que, quando golpeava a porta, Nicholson não estava apenas atuando. As primeiras portas, leves, projetadas para quebrar com facilidade, se desfaziam rápido demais, antes mesmo de a câmera registrar a tensão que Kubrick estava obstinado a conseguir.
Um ciclo longo, então, começou. A cada tentativa, novas portas reforçadas e mais densas eram trazidas para que a cena não ficasse falsa demais. O chão do set já acumulava serragem. A decoração, os estilhaços da madeira rachada. Nicholson repetia, golpe atrás de golpe, em um ritmo assustador até mesmo para a produção, a icônica machadada na porta. A equipe calculava. Era preciso mais portas. No final, mais de sessenta foram completamente destruídas: portas que não resistiram à intensidade emocional da cena.
Kubrick esperava como quem aguarda um sinal divino para dizer: “é essa“. Quando ele finalmente ouviu o estalo perfeito, a madeira cedendo no tempo certo e o olhar de Nicholson incendiar a cena, soube que aquela era a tomada certa. Não foi a primeira, a décima nem a quinquagésima. Foi exatamente aquela que transmitiu o completo instinto animalesco e primitivo de Nicholson.
A herança quebrada e a verdade escondida no estilhaço
Hoje, quando assistimos ao filme, a cena parece tão simples, fácil, fluida. No entanto, ela nasceu de um processo exaustivo, ritualístico e que consumiu física e mentalmente todos os envolvidos. Os testemunhos daquela noite traduzem a relação de Kubrick com seu elenco: os limites eram esticados até quase romper. O diretor estava obcecado pela perfeição, e Nicholson mergulhou na loucura de seu personagem, criando uma cena inesquecível. Talvez seja por isso que “O Iluminado“ continua a assombrar não apenas pela sua história misteriosa e macabra, mas pelo que custou à equipe.
As portas empilhadas, como se pertencessem a um cenário de guerra, eram muito mais do que pedaços de set destruídos, eram cicatrizes visíveis de um processo que transformou a filmagem em resistência, a direção em obsessão e a atuação em um confronto direto com a própria sombra. O machado de Nicholson quebrou muito mais do que madeira: abriu um rasgo definitivo entre a atuação e a entrega, entre o que o cinema mostra e o que ele exige.
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