A primeira impressão que se tem de “Flicka“ é a de um filme que tenta sugerir simplicidade enquanto, silenciosamente, negocia temas que jamais são simples: pertencimento, ruptura e a delicada fabricação de afetos que moldam a adolescência. A narrativa se ancora em Katy McLaughlin, interpretada por Alison Lohman, uma jovem que retorna ao vasto rancho da família depois de falhar em um exame no internato que frequenta. Seu fracasso escolar não é o centro da história, mas o gatilho que a reconecta a um território onde as tensões pessoais se materializam com a mesma força das montanhas que cercam a propriedade. O que se desenrola ali não é apenas a história de uma garota e um cavalo selvagem; é o embate entre uma sensibilidade em formação e um pai que enxerga o mundo pela lente rígida da funcionalidade.
Katy encontra uma mustang que captura sua imaginação de maneira imediata, como se representasse tudo aquilo que ela própria ainda tenta nomear. A escolha do nome Flicka não é mero gesto de carinho, mas a tentativa de afirmar uma relação que existe antes mesmo de ser permitida. Tim McGraw, no papel do pai, interpreta um homem que teme qualquer forma de instabilidade, seja na gestão do rancho, seja na educação da filha, e vê no animal um fator de ameaça. Maria Bello, como a mãe, ocupa um espaço mais silencioso, mas crucial: o de quem reconhece, ainda que com reservas, a força da ligação entre a adolescente e o cavalo. Essa triangulação familiar funciona como motor dramático, e é ali que o longa encontra seus momentos mais interessantes, quando a emoção não é declarada, mas insinuada no choque entre expectativas e desejos.
A relação entre Katy e Flicka se fortalece não porque o filme romantiza a ideia de domesticar o indomável, mas porque reconhece que todo vínculo verdadeiro é um processo arriscado. O encontro com o leão-da-montanha não serve como espetáculo gratuito; funciona como metáfora de uma juventude que ainda não distingue perigo de fascínio. Quando o pai decide vender Flicka para um rodeio, o gesto é mais do que uma decisão prática: é uma tentativa de reafirmar uma ordem que vem se desintegrando aos poucos. Ryan Kwanten, como o irmão, ajuda a tensionar esse equilíbrio, expondo o isolamento emocional que permeia a família, ainda que ninguém admita diretamente.
O percurso emocional de Katy se consolida quando ela se recusa a aceitar a perda e parte em busca da mustang. Não se trata da típica rebeldia adolescente, mas de uma recusa contundente a ser moldada por um universo que insiste em neutralizar suas escolhas. Danny Pino surge como um dos peões do rancho, ampliando o contraste entre a disciplina do trabalho diário e o ímpeto instintivo da protagonista. O reencontro entre garota e cavalo, ainda que previsível em estrutura, ganha intensidade porque o filme sabe que, naquele gesto, está condensado algo mais profundo: a compreensão de que amadurecer significa, muitas vezes, negociar com a própria perda.
O longa dirigido por Michael Mayer encontra força nos detalhes. A paisagem de Wyoming funciona quase como um contraponto moral: cada plano aberto revela a vastidão que cerca os personagens, lembrando que o horizonte que tanto fascina a menina é também aquilo que assusta seu pai. Essa espécie de dupla leitura atravessa todo o enredo, reforçada pela trilha musical de Aaron Zigman, que nunca tenta manipular sentimentos, mas acompanha o percurso de Katy com delicada precisão. A fotografia de J. Michael Muro favorece o contraste entre o cotidiano árduo do rancho e a sensação de liberdade que Flicka desperta, evitando a armadilha da grandiloquência.
O mérito maior do filme está em articular um conflito íntimo sem recorrer a maniqueísmos. Mesmo quando escala situações de maior tensão, a narrativa sustenta uma lógica emocional que respeita seus personagens. A transformação do pai não é súbita, mas resultado de pequenas fissuras que se acumulam até que ele perceba que impedir a filha de crescer significa impedir que ela exista de forma plena. Os afetos que se reorganizam no final não são um aceno ao sentimentalismo fácil, mas a constatação de que certas relações só encontram estabilidade depois de atravessarem o desconforto.
“Flicka“ dialoga com um imaginário antigo sobre a ligação entre humanos e animais, mas o faz com a consciência de que, muitas vezes, o indomável não é o cavalo, e sim a urgência de descobrir quem se pode ser quando ninguém está observando. O filme se encerra com a sensação de que algumas conquistas não dependem de heroísmo, mas da coragem de reivindicar o próprio lugar no mundo, mesmo que isso signifique enfrentar, sozinha, a vastidão de um campo aberto.
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