Um corredor de cassino iluminado por néons conduz a um palco que parece infinito. No centro, um homem de branco tenta atravessar a própria exaustão para continuar cantando. Em “Elvis”, Baz Luhrmann acompanha, por décadas, o percurso de Elvis Presley, vivido por Austin Butler, sob o olhar pegajoso do empresário Colonel Tom Parker, interpretado por Tom Hanks, enquanto Olivia DeJonge encarna Priscilla. O conflito central se impõe cedo: até que ponto um artista pode comandar o próprio destino quando a intermediação vira corrente.
A história é contada a partir da lembrança de Parker, já velho, hospitalizado, tentando justificar escolhas que o isolam. Ele decide se apresentar como descobridor, pai e estrategista de um talento que, segundo sua narrativa, precisaria de controle constante para não desmoronar. A motivação é evidente, limpar o próprio nome e reduzir a tragédia a um mal-entendido contratual. O obstáculo vem do que o espectador vê: um jovem Elvis que reage à música com impulso físico incontrolável, antes mesmo de qualquer plano de marketing.
No sul segregado, o garoto branco que frequenta tendas de gospel e bares negros encontra um som que mistura espiritualidade e desejo. Quando sobe a um palco improvisado, o corpo inteiro se move como se ignorasse etiqueta racial e religiosa. Parker presencia essa resposta coletiva e toma uma decisão rápida, transformar aquela reação em mercadoria nacional. Convence o cantor e a família com promessas de segurança financeira e projeção em escala que ultrapassa o circuito regional. A partir daí, cada contrato assinado aproxima o protagonista de um futuro brilhante e, ao mesmo tempo, o afasta da origem que alimenta a própria voz.
Luhrmann filma o início da ascensão como se o país inteiro ligasse a televisão ao mesmo tempo. A montagem acelera, notícias, capas de revista, produtos licenciados e gritos de fãs ocupam a tela em poucos segundos. É uma opção que não serve apenas como ornamento visual, mas altera o modo como se percebe a perda de controle de Elvis sobre sua imagem. Ele aceita participar de programas de auditório domesticados, troca o risco dos palcos menores pelo conforto de variedades televisivas. O objetivo é agradar patrocinadores e autoridades, após reações moralistas à sexualidade explícita de suas apresentações. O preço imediato é a transformação do escândalo em rotina previsível.
O ponto de vista declarado continua sendo o de Parker, que narra, justifica, se coloca como vítima de ingratidão. Ainda assim, o filme abre brechas. Em sequências de show, a câmera gruda no suor, no gesto hesitante, em olhares rápidos de Elvis para a banda, como se nesses instantes o protagonista decidisse, nota a nota, se obedece ao roteiro ou se arrisca a contrariar o empresário. Pequenas cenas domésticas com Priscilla oferecem outro ângulo, em que a figura pública colossal cabe em quartos apertados, cercada de brinquedos e roupas acumuladas. Essa alternância de focos não anula a narrativa de Parker, mas coloca um ruído constante em sua tentativa de controle.
Quando Hollywood aparece como próximo passo lógico, a decisão de Elvis é menos ativa do que parece. Diante da promessa de dinheiro fácil e exposição permanente, ele aceita uma série de filmes genéricos que repetem uma fórmula segura. Parker enxerga no cinema industrial uma chance de estabilizar receitas e manter o cliente longe de escândalos políticos. O obstáculo surge da própria época: enquanto a juventude americana se radicaliza, a guerra do Vietnã domina noticiários e a música popular tenta responder ao caos, o astro envelhece preso a roteiros inofensivos. O efeito dramático é um prolongamento da adolescência pública, que já não combina com o homem que volta para casa cansado.
A ruptura mais explícita vem na preparação do especial de televisão de 1968. O plano de Parker é simples, um programa comemorativo, cheio de canções natalinas, para agradar patrocinadores conservadores. Elvis, em diálogo com o diretor do show, decide desobedecer. Quer responder ao assassinato de Martin Luther King, à sensação de luto coletivo, à distância entre palco e realidade. O especial se torna uma espécie de retorno ao corpo inicial, de couro preto, suor, plateia perto demais. Tecnicamente, Luhrmann alonga músicas, reduz cortes, permite que o tempo se estique sobre um rosto concentrado. A consequência imediata é a recuperação de um artista que volta a sentir que escolhe algo diante das câmeras.
Esse gesto de rebeldia, porém, reforça a necessidade de Parker de encontrar nova forma de aprisionar a estrela. É aí que o cassino entra como personagem. O empresário negocia uma residência em Las Vegas que resolve ao mesmo tempo seus problemas de jogo e a necessidade do hotel de atrair público permanente. Elvis aceita o acordo buscando estabilidade para a família e a banda. O obstáculo está oculto, a impossibilidade de Parker viajar para fora dos Estados Unidos, por questões nunca explicadas em detalhes mas sugeridas como risco jurídico. Resultado prático, o cantor fica instalado em um circuito fechado de palco, suíte e corredor, repetido noite após noite.
A partir desse momento, o eixo de ascensão e queda se torna mais evidente. A voz continua poderosa, as apresentações crescem em duração e intensidade, mas o corpo começa a ceder. Há cenas em que a maquiagem pesa sob as luzes, em que o figurino justo parece dificultar a respiração. Luhrmann escolhe planos longos em determinadas entradas de palco, acompanhando passos trôpegos até o microfone, sem cortar para o público. Essas decisões formais fazem o espectador sentir o tempo arrastar, enquanto contratos e compromissos encurtam qualquer possibilidade de descanso. A cada nova temporada anunciada, a montanha de obrigações aumenta, e a chance de recuo diminui.
Nesse trecho, a mobilidade do ponto de vista ganha outra função. Por mais que Parker continue narrando, sua voz passa a conviver com olhares alarmados de médicos, membros da equipe, da própria Priscilla. Há cenas em que ele insiste em empurrar Elvis para o palco, mesmo diante de avisos clínicos. A motivação é explícita, pagar dívidas e manter o acordo com o cassino. O obstáculo assume agora forma física, um organismo saturado de remédios que já não responde aos comandos como antes. A consequência é dupla, o artista conserva a aura diante da plateia e, simultaneamente, se torna irreconhecível para quem convive com ele fora do foco.
As atuações centrais sustentam esse jogo de perspectivas. Austin Butler constrói um Elvis que aprende, aos poucos, a medir o próprio carisma, às vezes o usa como arma de resistência, às vezes como escudo para não enfrentar decisões íntimas. Tom Hanks assume Parker como figura quase grotesca, mascarada por maquiagem pesada e sotaque calculado, o que pode causar estranhamento, mas combina com a ideia de um narrador que transforma tudo em espetáculo, inclusive a própria culpa. Olivia DeJonge, com menos tempo de tela, encontra espaço em silêncios, em olhares que medem a distância entre marido e pai presente.
À medida que os anos avançam, o filme se aproxima da imagem mais conhecida do Elvis derradeiro, cercado de seguranças, fãs, médicos e objetos acumulados. Não se trata apenas de decadência física, mas de um tipo específico de confinamento, em que portas se fecham com suavidade de hotel de luxo e, ainda assim, funcionam como grades. Luhrmann intercala material de arquivo e reencenações, aproximando o rosto do personagem da figura histórica consagrada, sem detalhar cada evento biográfico. O que pesa é a sensação de que toda escolha disponível passa pelo palco do cassino.
O relato se suspende num gesto simples, um homem sentado ao piano, diante de microfones demais, respirando com esforço antes de atacar a próxima nota. Ainda há potência naquela voz, há um público inteiro esperando a música começar, há, sobretudo, um contrato a cumprir. A luz recorta o macacão bordado, brilha sobre pedras falsas e suor verdadeiro. Nesse quadro, a distância entre mito e indivíduo parece caber no intervalo de um fôlego que pode falhar.
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