Netflix resgata obra-prima de Scorsese considerada o 2º maior filme de gângster de todos os tempos Divulgação / Warner Bros.

Netflix resgata obra-prima de Scorsese considerada o 2º maior filme de gângster de todos os tempos

Um garoto de bairro pobre é atraído desde cedo para a porta dos bares e garagens controlados por mafiosos, fascinado por carros, ternos e cumprimentos que interrompem o trânsito, e decide se aproximar desse grupo. Em “Os Bons Companheiros”, Ray Liotta interpreta Henry Hill, ao lado de Robert De Niro e Joe Pesci, sob direção de Martin Scorsese. O conflito central está na tentativa de Henry de conciliar o encantamento por esse mundo com a ameaça crescente de punição institucional e de traição entre parceiros armados.

O filme acompanha a decisão precoce de Henry de abandonar a escola e se colocar à disposição de um grupo de gângsteres do Brooklyn, movido pela sensação de que o trabalho legal jamais lhe daria respeito imediato. O obstáculo inicial é direto: ele ainda é um adolescente, limitado a recados, pequenos favores, tarefas aparentemente inocentes. Cada recado concluído e cada carro estacionado em local proibido ampliam o acesso a segredos e recompensas, aproximando o rapaz de negócios mais caros e mais violentos.

Ao longo dos anos, Henry escolhe aprofundar essa relação, formando dupla próxima com o personagem de De Niro e aceitando a presença explosiva da figura vivida por Joe Pesci, cuja instabilidade nasce tanto de orgulho ferido quanto de um prazer em humilhar quem considera inferior. A motivação passa a ser menos dinheiro e mais posição numa cadeia de comando que mistura família, vizinhança e empresa informal. O obstáculo muda de rosto: a polícia observa, outros grupos disputam território, a própria organização cobra resultados sem tolerar hesitação, e cada erro tem custo físico imediato.

Scorsese filma essas escolhas com câmera que raramente descansa, acompanhando Henry por corredores estreitos, cozinhas lotadas, festas que parecem mesmo não terminar. O espectador percebe como cada gesto de ostentação pública, cada jantar com fila preferencial, nasce de uma necessidade de provar pertencimento, e não apenas de exibir riqueza. A montagem salta anos com naturalidade, concentrando-se em momentos em que uma decisão altera o rumo geral: um roubo maior do que o habitual, uma combinação precipitada com fornecedores de drogas, um casamento que mistura afeto e cálculo de proteção social.

Em um dos trechos mais secos, decisões se acumulam em sequência. Henry acorda cedo. Liga para comparsas. Marca encontros apressados. Compra armas. Repassa pacotes. Desvia da polícia na estrada. Mente para a esposa. Promete voltar para o jantar em família. A motivação é acelerar um último grande movimento financeiro. O obstáculo é a soma de detalhes banais: um helicóptero no céu, trânsito pesado, um olhar suspeito num estacionamento. O efeito é a sensação de que a rotina criminosa, antes glamourosa, agora sufoca como quarto sem janelas.

O eixo da ascensão e queda aparece na forma como Henry reage ao primeiro grande dinheiro. Ele investe em carros e festas, aceita que a casa se encha de parentes curiosos, permite que roupas coloridas substituam o uniforme discreto dos tempos de recados. Parece triunfo, mas já carrega a semente da exposição excessiva. Scorsese prefere alongar planos em que Henry olha ao redor tentando controlar tudo, enquanto a câmera, ou melhor, a própria encenação insiste em mostrar cantos de quadro que escapam à sua vigilância e abrigam ameaças silenciosas.

A relação de Henry com Karen, a namorada que se torna esposa, representa outra série de decisões fundamentais. Ela aceita se aproximar desse universo porque enxerga naqueles ternos e presentes uma saída para o desconforto de origem, porém também percebe, em visitas a delegacias e hospitais, um custo emocional crescente. Cada vez que escolhe permanecer, seja por amor, medo ou conveniência, enfrenta o obstáculo de uma violência que se torna mais explícita dentro de casa. O efeito prático é uma dependência mútua que complica qualquer tentativa de ruptura, inclusive quando a polícia oferece alternativas concretas.

A técnica contribui diretamente para essa sensação de cerco progressivo. O uso recorrente de música pop e rock não ilustra apenas época; muda o foco da atenção ao alternar entre euforia e ameaça, como se cada entrada de uma canção anunciasse que alguém tomou decisão impensada. A montagem acelera nos momentos em que personagens tentam improvisar saídas, cortando de telefone em telefone, de carro em carro, até que a cronologia pareça se embaralhar. Ele não diz, mas o ritmo indica que nem Henry entende mais todas as frentes de risco que abriu.

Quando a possibilidade de colaboração com o Estado surge como saída, Henry se vê diante do impasse máximo. Permanecer fiel ao grupo significa encarar prisão prolongada ou algo pior. Aceitar o acordo implica renunciar à identidade construída desde a adolescência, incluindo o prestígio doméstico sustentado por anos de dinheiro fácil. A motivação, agora, é pura sobrevivência, atravessada pelo desejo de preservar a família nuclear. O obstáculo é a lembrança de cada código informal que jurou respeitar. O efeito imediato é uma mudança de cenário radical, que troca restaurantes cheios por ambientes anódinos e vigiados.

O personagem que buscou intensidade em cada esquina passa a lidar com sacolas de mercado e formulários burocráticos. A ascensão, antes barulhenta, deixa apenas vestígios em relatos, fotos, processos criminais. O filme recusa qualquer romantização tardia, preferindo enfatizar o corpo cansado de Henry, o olhar de alguém que conheceu privilégios e medos que não se repetem numa vida regulamentada. Fica a imagem concreta de um homem comum em fila, lembrando silenciosamente que certas portas, uma vez atravessadas, nunca se fecham de verdade.

Filme: Os Bons Companheiros
Diretor: Martin Scorsese
Ano: 1990
Gênero: Biografia/Crime/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★